Joe Rose e Clarissa Mellon faziam um romântico piquenique em uma região semi-bucólica quando um grito corta sua felicidade e arrasta Joe para um turbilhão de eventos que culmina com a morte de um homem em um acidente de balão. Porém, devido às circunstâncias do evento, que envolveu outras pessoas, a culpa atormenta Joe e o coloca em contato com um homem que passará a fazer parte de sua vida de uma maneira mórbida daquele momento em diante: Jed Parry.
Clarissa é professora acadêmica e divide seu tempo orientando a participando de reuniões, projetos e compromissos acadêmicos, além de aprofundar-se em suas pesquisas sobre Keats.
Joe escreve artigos científicos para revistas e periódicos onde faz a intermediação entre o saber acadêmico, hermético e de difícil decodificação; e o grande público, traduzindo a complexidade do discurso científico em palavras mais acessíveis a população em geral. Seu ateísmo incomoda Jed Parry quando do incidente com o balão, ao passo que esse assume para si a tarefa de converter Joe a seu Deus e, além disso, fazer Joe acordar para a “realidade”, que, segundo sua concepção, é a relação amorosa que existe entre os dois, mas que Joe ainda não percebeu.
Dessa obsessão de Parry é que surge o motor da história de Amor sem fim, conduzida com muita personalidade por McEwan. O livro absorve o leitor e se coloca como uma incógnita a cada página, pois cada novo capítulo é completamente imprevisível, visto que a mente atormentada e alienada de Parry coloca novos eventos a cada novo dia na vida de Joe, inclusive atentando frontalmente contra sua relação com Clarissa.
Mesmo só tendo lido dois livros de Ian McEwan, dá para perceber que um de seus intentos é o de causar perturbação no leitor através da peculiaridade aparentemente absurda de suas histórias. Elas começam como narrações simples e constantes, mas que acabam por desembocar em terrenos movediços e interessantes. Não a toa é chamado por alguns de Ian “Macabro”, pela crueza direta e efeito impactante de suas tramas.
A obsessão de Parry é colocada em questão pela hipotética alucinação de Joe, que teria ficado abalado pela infausta experiência do incidente com o balão, ao passo que o narrador da história (Joe) se vê preso em uma espécie de pesadelo de impotência de requintes kafkianos, aliás, essa foi a impressão que me causou O jardim de cimento, e que parece ser uma marca de suas obras (vide o epíteto “macabro”).
A mente perturbada de Parry é combinada, como comumente são as mentes perturbadas, com uma vontade férrea e obsessiva, que não mede esforços para atingir seu intento, e que conduz suas ações de forma perfeccionista e orquestrada em seus mínimos detalhes, tornando a narrativa uma tensão do início ao fim, visto que a imprevisibilidade das decisões de Parry pode descambar a qualquer instante para comportamentos violentos ou para uma patologia mais grave cujos desdobramentos podem ser fatais para qualquer personagem que passeia pelo palco construído pelo autor.
Talvez seja cedo para colocar o nome de Ian McEwan em uma galeria proeminente onde figurem grandes nomes da literatura mundial, talvez já tenha passado da hora de fazê-lo. Já me considero um entusiasta de sua literatura, não necessariamente pelo nível de elaboração ou complexidade, mas pela característica essencial e louvável (a meu ver) de tirar o leitor da inércia cotidiana, de fazê-lo interagir com novas situações e avaliá-las a partir de pontos de vista diferentes, levando em consideração os absurdos cotidianos do mar de fragmentos da vida moderna, onde a perturbação se esconde nos mais inesperados rincões.
A destilação que ele vai promovendo de eventos aparentemente corriqueiros consegue fazer saltar do comum, eventos absurdos, experiências formadoras forjadas na incerteza e na descrença, enfim, uma experiência instigante para o leitor.
Bom, muito bom 😀
essa sensação kafkineana de impotência dá uma angústia no leitor ><
É isso mesmo, Joe Rose é levado de roldão no turbilhão de acontecimentos, todas as suas tentativas de fazer algo a respeito do que vem acontecendo é quase ignorado, fazendo com que ele se sinta impotente e o leitor junto com ele. A sensação que me causou (algo puramente subjetivo e levando em consideração os problemas que envolvem a comparação) foi muito parecido com as que sofreram os personagens trancados no manicômio em ‘O Alienista’, aquele angustiante conto do Machadão. Não se pode fazer nada, ninguém te leva a sério, você pode falar, mas ninguém vai te ouvir. Dá arrepios só de pensar.
Concordo, vc estava falando e ninguém te ouve ou faz de conta em não te ouvir, não importa o esforço q vc faça para ser ouvido é em vão, beirando o absurdo. Isso me deiixa bem incomodada.
Diria mais ainda Maníaca, não só incomodado como em vias de enlouquecer, pense bem, alguém diz que você é louco. Se você não fizer nada, vai ser considerado louco e se você quiser fazer algo ninguém vai te escutar, porque o que você fala é somente um delírio da sua mente, já que você, do ponto de vista de quem te taxou de louco, é louco.
Nunca usei a palavra louco tantas vezes em uma só frase, mas acho que deu para entender, né? Assustador!
Pois é, Lucas, comecei a ler Amor sem fim e varei 3 noites. A primeira foi a ‘pior’, fiquei aceleradíssima, desconcertada, sei lá mais o quê. Terminei hoje e o livro não me sai da cabeça. Achei muito pertinente sua associação a O Alienista. Aliás, sua resenha toda.
Não conhecia este blog. Vou voltar. Parabéns a vocês todos.
Anaelena
Fique a vontade, o Meia está aí para ser acessado diariamente, pois é atualizado todos os dias, até no feriado. O livro do McEwan prende mesmo, é uma leitura muito gostosa mas angustiante em alguma medida. Os delírios do Parry são um motor e tanto para o desenrolar dos eventos. Quero ler mais livros desse autor.
deu vontade de ler