Todos conhecem o tipo de vida de uma pessoa que quer fazer o que bem entende: sexo barato e frequente, mas sem nenhum amor; vida emocional e mental detonada; busca frenética por felicidade, sem satisfação; deuses que não passam de peças decorativas; religião de espetáculo; solidão paranóica; competição selvagem; consumismo insaciável; temperamento descontrolado; incapacidade de amar e de ser amado; lares divididos; coração egoísta e insatisfação constante; costume de desprezar o próximo, vendo todos como rivais; vícios incontroláveis; tristes paródias de vida em comunidade. E, se eu fosse continuar, a lista seria enorme. Essa não é a primeira vez que venho advertir vocês: se usarem a liberdade desse modo, não herdarão o Reino de Deus. (Gálatas 5:19-21 – A MENSAGEM)
A fala de Hamlet, na versão que caiu no gosto popular, diz que “existem mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. O livro de Karleno Bocarro, de certa forma, nos revela algumas delas, sobretudo, ouso dizer, aquelas que estão embaixo da terra. E tomo aqui o embaixo da terra em três sentidos diferentes.
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Geográfico: Uma boa parte da trama se passa num bar no subsolo de um prédio abandonado, numa área devastada da cidade. Os escombros de um bairro inteiro no período pós-guerra é também o cenário em que circulam as pessoas com a vida mesma em escombros.
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Existencial: São essas vidas em escombros que constituem aquilo que costumamos chamar de submundo, um mundo que hoje, em linguagem descolada, chamamos de underground. Um ambiente em que há abundância de drogas, sexo, euforia e vazio.
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Metafísico: Há também a presença do próprio Mal, que, embora aterrorizante quando se mostra ao incorporar numa alma atormentada, não se ausenta de nenhuma das páginas do livro.
Dito desse modo, pode parecer tratar-se de um livro moralista, que pretende fazer censuras a comportamentos, etc., coisa que não é nem de longe. É mais provável que o moralista aqui seja eu mesmo. O narrador tem tanta história para contar que não pode deixar perder-se em psicologismos nem em longas exposição teóricas. Tudo o que há para ser dito o é a partir das desventuras de um grupo de amigos brasileiros numa Alemanha recém unificada, mas à qual pouco se adaptaram.
Todo o vigor da trama se deve a personagens marcantes como o tal do Marco Dilthey, um sujeito que vai para Berlim a fim estudar, mas pouco dotado de talento; Barad, o mais pretensioso dos brasileiros em Berlim, apesar de sua obsessão pelos estudos ter raízes numa espécie de desejo de autoafirmação; Bocas, um camarada que de tão perverso quase nos faz desacreditar de que há ainda algum resquício de imagem divina no homem. Há outros, embora menos marcantes.
Chamar Marco de pouco dotado de talento é um eufemismo. Marco é um sujeito que quase. É incapaz de qualquer realização. Quase conquista mulheres, quase se dá bem na vida, quase, quase, quase… Não deixa de ser um retrato daqueles que insistem em acreditar numa “lavação da égua”, mesmo que não se disponham a tomar o balde, o sabão e a escova. Nalguns momentos, acompanhar a trajetória de Marco me fez lembrar do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.
É sempre um risco ser ousado na pretensão e modesto nos resultados. E não basta disciplina para que as coisas aconteçam. É o que nos mostra Barad. Ao que parece, Barad se imagina um literato menos por amor à literatura e mais por amor à glória, às loas do reconhecimento, vaidade, vanidade…
E o que há de mais sinistro é que até Bocas – uma das personagens mais inconsequentes e perversas de que tenho notícia, supostamente uma encarnação da liberdade libertina – é um sujeito escravizado, seja por seus vícios, seja por seus fornecedores de “vitaminas”.
O único personagem que ainda exerce alguma liberdade é Gruba. Quando ele se põe a falar, surpreende por sua lucidez embriagada. Sabe bem a posição que ocupa e que, por pior que possa parecer, vive a vida que escolheu.
Luisa, a namorada de Marco que ficara no Brasil, parece uma incógnita. Tudo indica que ela também entraria no ciclo e seria mais uma a deixar-se levar pela vida. Isso não acontece, para surpresa e frustração de Marco. Sua presença ali, discreta, às vezes parecendo dispensável, é na verdade um resquício de uma vida legítima. A Luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Luisa parece ter entendido que quem vive ao estilo “deixa a vida me levar” acaba não chegando a lugar algum. Como Marco…
Notas marginais
1. Parece-me que a maior fragilidade do livro está na sintaxe. Há diversos trechos que poderiam ter sido mais bem pontuados; há certas construções que soam muito pouco eufônicas aos ouvidos brasileiros; há, inclusive, alguns titubeios de construção (Ex: p. 43, último parágrafo:Parecia um bairro entregue à própria sorte, isto quer dizer, ao domínio desajustado dos imigrantes; para não me prolongar em gramatiquês, parece-me que ali ficou-se entre própria sorte, isto é, ao domínio e quer dizer, ao domínio… Na melhor das hipóteses, caberia a supressão daquela vírgula e passar-se-ia a considerar uma coordenada: entregue à própria sorte, e isto quer dizer ao domínio desajustado dos imigrantes). Uma construção recorrente, que chegou a me incomodar um pouco é a glosa de pronomes. Ela, Luisa, blábláblá… Não com ele, Barad… A frequência de tal estrutura foi grande. Além disso, é verdade, há, sim, alguns erros de digitação e/ou ortografia. Não ouso ser tão contundente quanto um de seus leitores porque, enfim, sei como é estar do lado de cá da linha. Também eu sou revisor, rsrsrs!
2. Assim como relatou um de seus leitores, também a mim perguntaram se se tratava de um romance espírita. Há males que vem para bem: suponho que você esteja bem vivo e que este livro não seja a apropriação do manuscrito de um morto (rsrsrs!); suponho também que você não gostaria de ver a qualidade literária de seu livro equiparada à de um romance de Zíbia Gaspareto. Mas, ah, disso tenho certeza: não reclamaria de vender como ela! Aliás, naquela oficina que fizemos no IICS com o A. F. Borges, ele disse uma frase memorável: “Não gostaria de escrever como Paulo Coelho; mas vender como ele eu adoraria!”
3. Enfim, depois de ter lido esse livro, já posso dizer que tenho um amigo escritor. Escritor de verdade! As almas que se quebram no chão tornou-se um livro caro a mim. E tenho-o autografado! Daqui uns poucos anos, todos saberão quem é Karleno, e eu poderei dizer: é meu amigo! Sucesso!
PS: O livro é bom. Arranca sorrisos, deixa apreensivo, surpreende. O final é ótimo! Imaginamos o que ainda vai acontecer a Marco e de repente não acontece nada… Ora, este é o fim mais trágico que pode acontecer a alguém – viver sem que nada aconteça, na mais absoluta mediocridade.
Sobre o autor: William Campos da Cruz é revisor de textos, crítico literário e licenciado em Letras pelo Centro Universitário São Camilo; natural de São Paulo.
Crítica bastante pertinente! Pena cair no lugar-comum de criticar outros autores que, por uma razão “misteriosa” são do agrado do público, o que leva a Academia a persistir em uma inveja discordante e feia. Talvez, já tenha até passado da hora de se validar o gosto popular ou será que só os acadêmicos possuem o “ dom” de reconhecerem a “ verdadeira “ Literatura?rsrs