Aprendi com meu filho de 10 anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que eu nunca vi.

(Oswald de Andrade)[1]

A poesia – posta aos olhos das crianças – guarda em sua linguagem o lugar propício para a descoberta, o fascínio, a surpresa. Talvez por isso, não é de causar nenhum espanto o crescente interesse de poetas (do cânone literário ou não) em criar poemas voltados às crianças. Visto que, segundo Lajolo & Zilberman (2007), a poesia mais recente alcança certo amadurecimento estético ao se contrapor ao poema didático, de recorte pedagógico, algo tão comum, para ficarmos num exemplo famoso, na obra de Olavo Bilac. “Até a década de 60, a poesia infantil brasileira guardava resquícios parnasianos, quer pelo conservadorismo formal, quer pelo seu compromisso com a pedagogia.”[2]

Nesse mesmo caminho, as autoras reforçam a afirmação de que a recente poesia infantil busca, em sua forma de tratar a linguagem e poética particulares, um modo extremamente rico em sugestões poéticas, abordagem de temas, escolha das personagens e cenários, forma narrativa, uso da metalinguagem, aproximação com o surreal e o fantástico, entre outras escolhas; assim, encaram a poesia feita aos mais jovens numa perspectiva diferente, pois afirmam que “a primeira marca dessa poesia infantil mais recente é o abandono da tradição didática que, por um largo tempo, transformou o poema para crianças em veículo privilegiado de conselhos, ensinamentos e normas.”[3]

Assim sendo, os poemas de “Dia de folga”[4], do poeta francês Jaques Prévert, lançado no Brasil em 2004, e adotado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação, na edição de 2005, são uma obra de extrema sutileza no trato com a palavra, rica em significados, que tratam do dia-a-dia de maneira particularmente original. O livro é dotado tanto de achados poéticos quanto de humor peculiar, nele vemos, segundo Silviano Santiago, “poemas de execução simples e calculada, onde ressaltam as cores cinzas do cotidiano, os meios-tons do humor e o colorido berrante do sarcasmo.”[5]

A edição que comentaremos foi ilustrada por Wim Hofman e traduzida por Carlito Azevedo. “Dia de folga” (2004) não é um livro originalmente escrito para crianças, mas o ilustrador holandês, autor premiado em literatura infantil, selecionou os poemas em torno de uma mesma temática em que a imagem do pássaro assume papel de grande relevância, já que surge de diversas maneiras e em diferentes momentos do livro. Gatos, baleias e caramujos também habitam o mundo imaginado pelo poeta, seja no plano da personificação ou da metalinguagem associada ao já referido humor e a um certo comentário irônico-debochado do homem, em suma, de seu cotidiano.

As ilustrações, todas em preto-e-branco, são sugestivas, de forma alguma tolhem a criatividade da criança, pelo contrário, apenas as instigam a criarem as suas próprias imagens via o poema que leem, aos versos que ganham cores e significados ao passo da leitura, portanto, os pássaros de Prévert são pretos, brancos, amarelos, vermelhos, enfim, das cores da imaginação.

A seguir, faremos breves comentários a partir de excertos do poema “Para fazer o retrato de um pássaro”, publicado originalmente no livro “Paroles” (1945). Trata-se do poema de abertura da coletânea “Dia de folga”.

Primeiro pintar uma gaiola

com a porta aberta

depois pintar

qualquer coisa de bonito

qualquer coisa de simples

qualquer coisa de belo

qualquer coisa de útil…

para o pássaro

Prévert sabiamente convida o leitor – em nosso caso, imaginemos a criança lendo o primeiro poema do livro – a fazer parte da criação, ao passo que o poeta constrói os versos brancos, o leitor vê sob a sua leitura a criação dessa estranha gaiola, essa que deve ser feita com a porta aberta. E dessa forma, podemos também associar a liberdade dos versos brancos à liberdade advinda da ideia de uma gaiola aberta. A anáfora presente em “qualquer coisa”, além da aproximação semântica de palavras como “bonito” e “belo” vão dando corpo à casa “útil” e “simples” que o poeta sugere para o ainda misterioso pássaro; e segue:

depois pendurar a tela numa árvore

num jardim

num bosque

ou numa floresta

esconder-se atrás da árvore

sem dar um pio

sem mover um dedo…

Nesse momento, o poema continua em forma narrativa apresentando novos elementos, sugerindo novos passos ao leitor-criador, e assim, acrescenta o “jardim”, o “bosque”, a “floresta” e a “árvore”, ou seja, põe um cenário para a pintura que está a fazer, e como antes, elenca palavras de um mesmo campo semântico. E o mistério vai sendo aos poucos revelado:

Às vezes o pássaro chega sem demora

mas pode também levar longos anos

até se decidir

Não se abater

esperar

esperar anos e anos se preciso

pois a rapidez ou a demora

do pássaro não têm nada a ver

com o sucesso do quadro

Aqui, o poeta fala claramente ao leitor: “não se abater”, “esperar anos e anos se preciso”, e, de certa forma, também fala aos artistas em geral, aos poetas, aos pintores, pois a arte não necessita de pressa, deve vir aos poucos, criada passo a passo, pensada verso a verso, traço a traço. E adverte:

Quando o pássaro chegar

se chegar

manter o mais profundo silêncio

esperar que o pássaro entre na gaiola

e quando entrar

fechar suavemente a porta com o pincel

depois

apagar uma a uma todas as grades

tomando cuidado para não tocar sem querer nas penas do pássaro

Temos então, nesses versos, a possível chegada do pássaro, da beleza, mas em conta do cuidado, do silêncio, pois o leitor-pintor não deve, depois dessa empreitada, estar distraído, em vias de estragar a sua criação; nesse momento, podemos abaixar o tom da voz, diminuindo o barulho da leitura, já que não desejamos (os leitores) espantar o misterioso pássaro:

Fazer depois o retrato da árvore

reservando  o galho mais belo de todos

para o pássaro

pintar ainda a folhagem verde e o frescor do vento

a poeira do sol

e o rumor dos insetos na relva no calor do verão

depois é só esperar que o pássaro comece a cantar

Se o pássaro não cantar

é mau sinal

sinal de que o quadro é mau

mas se cantar bom sinal

sinal de que pode assiná-lo

Então você deve arrancar devagarinho

uma das penas do pássaro

e escrever seu nome num canto do quadro.

Assim sendo, completada a pintura com o retrato da árvore, temos através da aproximação de termos um verdadeiro quadro poético, em que a sugestão da narrativa em forma de poema constrói, de forma delicada, uma falsa prisão, já que a gaiola de portas abertas não é prisão, é casa da arte, poesia e pintura, a criada pelo poeta, a imaginada pelo leitor, que sendo (ou tornando-se) uma criança, estará eternamente assinando o seu nome num canto de quadro, basta apenas, como visto no poema, estar atento ao canto do pássaro. O nosso breve comentário não teve como objetivo obter uma interpretação precisa de vários elementos passíveis de análise, e que estão presentes no poema, ou seja, através da escansão dos versos, contagem das sílabas poéticas, análise minuciosa de cada figura de linguagem, longe disso, pretendemos, assim como o poeta, mas de maneira despretensiosa, deixar um ar de vaguidão e incompletude, em seu caso, a imaginação do leitor foi convidada a tomar as rédeas do poema, no nosso, será as da interpretação, coisa que certamente é incomum em análises literárias, mas se, em palavras do crítico César Leal[6]:

a “análise sintática (essencialmente descritiva e semi–estatística do poema),

contagem das vogais e consoantes que se repetem, das sílabas e dos epítetos”.

Se o poema é apenas isto, Rimbaud tinha razão: “A poesia é uma estupidez”.

Logo, embriagados pelo humor e ironia presentes na obra poética de Jaques Prévert, deixamos em aberto essa nossa obra em progresso.

 REFERÊNCIAS

LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira, História e Histórias. São Paulo: Ática, 2007.

PRÉVERT, Jaques. Dias de folga. Tradução de Carlito Azevedo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

SANTIAGO, SILVIANO. In: FALEIROS, A. S. Revista CALIGRAMA – Literatura e Tradução, Belo Horizonte, v.15, n.1, p. 11-25, 2010.

ACCIOLY, Marcus. Poética – Pré-manifesto ou Anteprojeto do Realismo

Épico. 1ª Ed. Recife: Editora Universitária, 1977.


 

[1] ANDRADE, Oswald de. Poesia reunida.. In: LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira, História e Histórias. São Paulo: Ática, 2007.

[2] LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A ruptura com a poética tradicional. In: Literatura Infantil Brasileira, História e Histórias. São Paulo: Ática, 2007.

[3] Ibidem. p.144

[4] PRÉVERT, Jaques. Dias de folga. Tradução de Carlito Azevedo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

[5] CALIGRAMA, Belo Horizonte, v.15, n.1, p. 11-25, 2010.

[6] LEAL, César. In: ACCIOLY, Marcus. Poética – Pré-manifesto ou Anteprojeto do Realismo Épico. 1ª Ed. Recife: Editora Universitária, 1977.

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Sobre o autor: Carlos Gomes (1981), natural de Recife, em Pernambuco. É  editor do blog Outros Críticos, colabora com o site Escritores e Tal e possui trabalhos em coautoria em contos ilustrados (Gomes & Maia) e música (Adiós Poeta). Atualmente, se prepara para lançar o seu primeiro livro de contos, “corto por um atalho em terras estrangeiras”, que sairá pela Editora Navras Digital em 2011.

Dia de Folga
Jacques Prévert
Tradução: Carlito Azevedo
48 Páginas
Preço sugerido: R$ 42,00

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Editora Cosac Naify