Se formos considerar a metáfora pugilística de Cortázar, em que os romances conquistam suas vitórias por pontos, então “Nevasca” seria uma espécie de anti-Rocky, um livro que avança com toda a energia nos primeiros rounds. Suas cenas de abertura são depuradas do que há de mais frenético e insólito: em um futuro próximo, Hiro Protagonista (em tempos de nomes estranhos para filhos de celebridades, fica aí a dica) se prepara para cumprir uma das poucas funções em que os americanos ainda possuem a excelência: a entrega de pizzas de alta velocidade. Não, não são apenas pizzas. No universo em que Neal Stephenson nos imerge, uma entrega feita em menos de 30 minutos representa a soberania da cultura americana, a honra dos Deliverators, e até a integridade dos cojones do protagonista, já que o delivery hi-tech está nas mãos da Máfia. Mesmo assim, se o tema ainda parece trivial demais, conceda-se ao menos o mérito a Stephenson por dominar essa vertente de escrita pop, que transforma situações banais em cenas preciosas da literatura.
Após esses primeiros momentos, a trama assume contornos mais tradicionais. Como um dos maiores hackers de todos os tempos (entregar pizzas é só um bico, ok), Hiro se vê logo envolvido na investigação de Nevasca, um vírus que supostamente seria capaz de afetar fisicamente pessoas conectadas ao Metaverso (algo como o ambiente virtual que teria sido gerado pelo Second Life se existisse uma interface minimamente mais imersiva que um mouse). A princípio, portanto, não faria sentido que houvesse contaminação do eletrônico para o biológico. A solução, construída peça a peça através de cenários tão diversos quanto a sede da Receita Federal e uma favela flutuante, demonstra uma outra característica das obras de Stephenson: a absorção de ideias e teorias de muitos campos diferentes. Neste caso, devem estar bem revisados os conhecimentos de neurolinguística e cultura babilônica. Mas não se preocupem, no final tudo vai bem resumido, em 15 páginas.
De certa forma, o ambiente construído por Stephenson representa uma atualização das características essenciais de obras anteriores do estilo Cyberpunk. Considere-se esse subgênero da ficção científica como a soma de três aspectos: alta tecnologia, especialmente no campo da informação; enfraquecimento dos Estados, com extensão do domínio político das grandes empresas; e atmosfera noir. É apenas nesse último item que se observam modificações relevantes. De fato, o clima de desamparo e paranoia de obras como “Blade Runner” e “Neuromancer” é substituído por um tom mais leve e debochado. Definitivamente não se deve encarar seriamente uma história em que o antagonista bad boy é um sobrevivente do povo aleuta, anda com uma ogiva nuclear no sidecar de sua Harley e tem tatuado na testa: BAIXO AUTOCONTROLE.
O meio da literatura especulativa é carente de bons escritores, de pessoas capazes não só de ideiais instigantes, mas também do bem contar, por isso é fácil entender o reconhecimento geral dado a Stephenson. “Nevasca”, no entanto, dificilmente poderia ser considerada sua melhor obra. Como revelou o autor, a história teria sido desenvolvida inicialmente como roteiro para uma graphic novel computadorizada, e parece mesmo bem evidente, em vários momentos, o apelo visual da narrativa. A parte final do livro, em especial, torna-se um acumulado de cenas de ação, com perseguições, explosões, armas de alto calibre e tudo mais que o pacote Rambo permite. Adicione-se a isso o fato de que a busca contínua por situações inusitadas vai exaurindo a eficácia desse recurso, e levando o livro cada vez mais a uma paródia de si mesmo, e temos necessariamente que marcar alguns pontos negativos na contagem. Por isso, o resultado final, a partir de uma ótima abertura, alcança apenas o razoável.