Na década de 60, já com a idade bem avançada, John Steinbeck decidiu que precisava conhecer novamente os Estados Unidos, pois o país que ele tivera a oportunidade de vislumbrar trinta anos atrás, quando perambulou por diversas localidades em um caminhão de padaria, não era mais o mesmo. A América, palco e questão central de seus livros, não lhe era mais tão familiar como ele gostava que fosse, como ele expressa:

“Eu, um escritor americano, que escrevia sobre a América, estava trabalhando exclusivamente de memória, um reservatório falho e traiçoeiro, na melhor das hipóteses. Há muito que eu não ouvia a voz da América, não lhe cheirava a relva, as árvores, os esgotos, não lhe via as colinas e as águas, a cor, a intensidade da luz.” (p. 11)

Buscando sanar esse desconhecimento foi que Steinbeck empreendeu uma jornada que atravessou diversos estados e regiões dos Estados Unidos (como pode ser visto no mapa logo abaixo), juntamente com seu poodle de pelagem negra chamado Charley, a bordo do caminhão Rocinante, modificado para servir-lhe também de moradia durante a viagem. Dessa peculiar jornada surgiu o livro Viajando com Charley (no original: Travels with Charley: In search of America [Viajando com Charley: Em busca da América]), publicado em 1962.

Diários de viagem não costumam ser o material mais divertido e empolgante de se ler. Seu cunho de relato propriamente dito pode afugentar uma porção de leitores, como me afugentara até aquele momento, mas devo dizer que Viajando com Charley me surpreendeu muito mais do que eu esperava. Steinbeck não se atém tanto à detalhes informativos ou ao mero relato como registro, ele nos informa seu paradeiro através de descrições primorosas dos cenários e dos tipos humanos com os quais mantém contato, usando-os como trampolim para alçar voos interpretativos mais altos.

Desse modo, o que encontramos nesse livro é a visão de um autor que despendeu praticamente toda a sua literatura a perscrutar a América, falando sobre ela num momento em que a imagem de sua juventude parecia não mais existir. A beleza do livro tem um quê de melancolia velada, pois se percebe o autor encarando a realidade com nostalgia, com um pouco de rabugice em relação às modernidades que encontra pelo caminho, e com um encantamento quase lírico em alguns momentos.

Steinbeck fica fascinado com as sequoias gigantes, convive com os trabalhadores que moram em cidades pré-fabricadas (que se mudam conforme a necessidade), com os motoristas de caminhão, pesca com um guarda de propriedade, tenta sondar as opiniões dos sujeitos que encontra a respeito da política (intento que não consegue levar a cabo), etc. O que ele quer é entender quem é e como vive e se comporta cotidianamente “o americano”. Na década de 30 ele escrevera páginas e mais páginas sobre as antigas classes médias rurais dos Estados Unidos, investigara seu “universo”, sua cultura e seu modo de viver; e agora procura cumprir tarefa semelhante com relação aos sujeitos com os quais trava conversas.

Embora não possua a agudeza crítica da década de 30, nem encontre na realidade histórica do seu tempo o fomento dramático que encontrou naquela época, Steinbeck consegue extrair um lirismo que toca o leitor pela serenidade e presença de espírito, colocando-nos diante dos dilemas enfrentados pelos trabalhadores nos idos da década de 60. O terreno encontra-se muito mais cediço, e parece não haver mais espaço (ou somente como exceção) para sujeitos meio “casca grossa”, meio idealistas, como Steinbeck. Seu jeitão à moda antiga parece se esboroar contra a volatilidade das identidades e da instantaneidade do mundo moderno.

Viajando com Charley (conquanto isso possa soar como modinha de preciosista, que costuma falar bem dos livros mais obscuros de um autor só para parecer cult) é um dos melhores livros de Steinbeck, junta sua simpatia humanista e sua reverência admirada aos sujeitos simples em suas lidas cotidianas com uma prosa de relato construída com esmero e vivacidade. Ainda que eu ache que algumas obras da década de 30 devam preceder a leitura do livro de 1962, ele se mantém como uma leitura independente que pode encantar leitores e não-leitores de John Steinbeck.

STEINBECK, John. Viajando com Charley. 2ª ed. Tradução de A.B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, S/D.