O fim da vida de pessoas públicas geralmente é marcado por uma série de discursos. Fala-se sobre as realizações do finado, sobre o quão importante ele foi. Faz-se alguns elogios à sua memória, lembra-se de dificuldades e de bons momentos. É algo bastante interessante e, até mesmo, louvável. Existe, porém, um grande problema nisso: a pessoa que melhor poderia falar a respeito do assunto é justamente a que deixou este mundo.

Nada melhor, então, do que homenagear a poeta polonesa Wysława Szymborska com as palavras da própria. Por isso, o Tiago traduziu, do francês, as palavras que ela proferiu quando do banquete do prêmio Nobel e eu, a partir do polonês, o discurso que ela fez na cerimônia de recebimento dessa mesma láurea.

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O poeta e o mundo

(por Wisława Szymborska, quando da entrega do prêmio Nobel de literatura, em 7 de Dezembro de 1996).

Há quem diga que num discurso a primeira frase é sempre a mais verdadeira. Então eu já os deixei para trás… Mas eu sinto que as sentenças seguintes serão difíceis, a terceira, a sexta, a décima, até a última, visto que tenho de falar sobre poesia.  Raramente faço declarações sobre tal tema, quase nunca. E sempre me acompanhou a convicção de que não o fiz da melhor maneira possível. Portanto, minha preleção não será demasiado longa. Toda imperfeição é mais fácil de tolerar se a servirmos em doses pequenas.

O poeta contemporâneo é cético e desconfiado até, e talvez acima de tudo, em face de si mesmo. É com relutância que admite publicamente ser poeta, como se isso fosse muito vergonhoso. Mas, em nossa época clamorosa, confessa-se com facilidade os próprios defeitos, desde que se apresentem elegantes, e muito dificilmente as virtudes, pois estão escondidas profundamente, raramente a própria pessoa crê nelas…  Em formulários ou em conversas com estranhos, quando o poeta forçosamente precisa reconhecer sua profissão, ele se diz evasivamente “literato” ou menciona algum trabalho adicional. A informação de que estão lidando com um poeta é recebida por burocratas e passageiros de ônibus com certa descrença e desconforto. Presumo que os filósofos causem a mesma perturbação. Ainda assim estão em melhor situação, pois a maioria tem a possibilidade de adornar sua profissão com títulos acadêmicos. Professor de filosofia é algo que soa ainda mais sério.

Não há, porém, professores de poesia. Isto significaria que a ocupação exige estudos especializados, aprovações em exames regulares, discussões enriquecidas com bibliografia teórica e referências e, finalmente, a outorga solene de diplomas. E isso, por sua vez, significaria que para tornar-se poeta não bastarão folhas de papel escritas, ainda que com os mais esplêndidos versos, é necessário antes de tudo um papel com um carimbo. Lembremo-nos que em tal fundamento baseou-se a condenação ao exílio do orgulho da poesia russa, posteriormente laureado com o Nobel, Josef Brodsky. Chamavam-no de “parasita”, pois não tinha um certificado oficial de que lhe era permitido ser poeta…

Alguns anos atrás eu tive a honra  e alegria de conhecê-lo pessoalmente. Notei que ele foi o único, entre meus conhecidos poetas, que gostava de falar de si mesmo como “poeta”, pronunciava essa palavra sem resistências interiores, se não de maneira provocantemente livre. Eu acho que é por lembrar das humilhações brutais pelas quais passou na juventude.

Em países mais alegres, onde a dignidade humana não é violada tão facilmente, os poetas certamente desejam ser publicados, lidos e entendidos, mas não fazem nada, ou muito pouco, para que a cada dia se distingam das outras pessoas.  Ainda assim, há não muito tempo, nas primeiras décadas do nosso século, os poetas gostavam de chocar com roupas extravagantes e um comportamento excêntrico. Era assim o espetáculo que faziam em público. Chegava o momento no qual o poeta fechava a sua porta, arrancava todas suas capas, bugigangas e outros acessórios poéticos e ficava parado calmamente, com a expectativa sobre si mesmo, em frente ao papel ainda em branco. Pois é isso o que realmente conta.

É característico. Produz-se incessantemente muitos filmes biográficos sobre grandes estudiosos e grandes artistas. A tarefa dos diretores ambiciosos é representar de maneira crível o processo criativo, que como resultado teve importantes descobertas científicas ou a criação das mais poderosas obras de arte. É possível mostrar com algum sucesso o trabalho de alguns cientistas: um laboratório, diversos instrumentos, mecanismos postos em movimento são certamente capazes de manter tensa a atenção da plateia. Além disso, existem os frequentes momentos de incerteza, será que o experimento repetido pela milésima vez apenas com mínimas modificações irá chegar ao resultado esperado? Também podem ser espetaculares filmes sobre pintores, nos quais pode-se reconstruir todas as fases envolvidas no nascimento de uma obra, dos primeiros traços às últimas pinceladas. Filmes sobre compositores enchem-se com os primeiros compassos, audíveis para seus criadores, até a forma madura do trabalho que espalha-se pelos instrumentos. Tudo isso é uma sequencia de esboços ingênuos e não fala nada sobre o estranho estado espiritual popularmente conhecido como inspiração, mas ao menos é algo para se assistir e mesmo ouvir.

O pior é com os poetas. Seu trabalho é desesperadoramente não fotogênico. A pessoa senta-se à mesa ou deita-se no sofá olhando fixamente para a parede ou para o teto, de tempos em tempos escreve sete versos, riscando um dali a quinze minutos, e passa-se mais uma hora durante a qual nada acontece… Qual espectador aguentaria ver algo assim?

Falei sobre inspiração. Quando lhes perguntam “o que ela é” ou se “ela é”, os poetas quase sempre respondem evasivamente. Não é por nunca terem sentido a benesse desse impulso interior. A causa é outra.  Não é fácil explicar aquilo que nós mesmos não entendemos.

Eu também, de vez em quando indagada a esse respeito, no fundo trato-o à distância. Mas respondo desse modo:  a inspiração não é um privilégio exclusivo dos poetas ou artistas de modo geral. É, era, e será sempre um pequeno grupo de pessoas que a inspiração visita. São todos aqueles que escolhem fazer seus trabalhos com amor e imaginação. Podem ser médicos, educadores, jardineiros e ainda centenas de outras profissões. Seus trabalhos podem ser aventuras constantes, desde que a cada vez encontrem nele novos desafios. Apesar das dificuldades e derrotas, sua curiosidade não arrefece.  A cada questão resolvida surge um enxame de novas perguntas. A inspiração, o que quer que seja, surge de um constante “não sei”.

Tais pessoas não são abundantes. A maioria das pessoas nessa terra trabalha para manter seus meios de subsistência, trabalha porque precisa. Eles não escolhem seus trabalhos por paixão, são as circunstâncias da vida que decidem isso. O trabalho não amado, que é tedioso, valorizado apenas porque, mesmo sendo assim, nem todos o têm, essa é uma das maiores desgraças humanas. E não há indicações de que os próximos séculos trarão mudanças felizes.

Enquanto falo eu me permito tirar dos poetas o monopólio da inspiração, mas os coloco num pouco numeroso grupo de escolhidos do destino.

Aqui algumas dúvidas ainda podem despertar na audiência. Vários torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos em luta pelo poder, com a ajuda de slogans vociferados em voz alta, também amam seus trabalhos e também os realizam com fervente engenhosidade. Bem, sim, mas eles “sabem”. Sabem e isso que sabem lhes basta para sempre. Nenhum dos acima jamais é curioso, pois isso poderia diminuir a força de seus argumentos. E todo conhecimento que não leva a novas perguntas morre em pouco tempo, perde a temperatura necessária a vida. Nos casos mais extremos, como bem sabemos pela história antiga e contemporânea, pode ser uma ameaça mortal à sociedade.

Por isso valorizo muito essas duas palavrinhas: “não sei”. Pequenas, mas com asas poderosas. Expande nossas vidas aos espaços que existem dentro de nós e aos espaços nos quais está suspensa nossa insignificante Terra. Se Isaac Newton não tivesse dito a si mesmo “não sei”, as maçãs do pomar poderiam cair em frente a seus olhos como granizo, e ele, na melhor das hipóteses, abaixar-se-ia até elas e acabaria com seu apetite. Se minha compatriota Maria Skłodowska-Curie não tivesse dito a si mesma “não sei”, teria certamente se tornado uma professora de química num internato para garotas de boa família, e nesse trabalho de outro modo respeitável, passaria sua vida. Mas repetia a si mesma “não sei” e essas exatas palavras a levaram não uma, mas duas vezes a Estocolmo, onde pessoas de espírito incansável e eternamente em busca recebem o prêmio Nobel.

O poeta também, se é um poeta autêntico, deve repetir para si mesmo “não sei”. Cada poema tenta responder essa indagação, mas tão logo coloca o ponto final, já abraça sua hesitação, já começa a perceber que essa reposta é provisória e absolutamente insuficiente. Agora tenta de novo e de novo, e depois essas sucessivas provas de sua insatisfação serão unidas com um grande grampo de papel pelos historiadores da literatura e chamados de sua “obra”…

Algumas vezes eu sonho com situações impossíveis de se realizarem. Imagino, audaciosamente, que, por exemplo, eu tenho a oportunidade de conversar com Eclesiastes, autor daquele comovente lamento sobre a vaidade dos assuntos humanos. Curvar-me-ia enfaticamente perante ele, pois ele é um dos poetas mais importantes, ao menos para mim. Depois pegaria sua mão. “Nada de novo sob o Sol”, você escreveu, Eclesiastes. Mas você mesmo nasceu de novo sob o Sol. Um poema, do qual você é o autor, também é algo novo sob o Sol, pois antes de você ninguém o havia escrito. E novos sob o Sol são todos o seus leitores, pois os que viveram antes de você não podem ter lido seus poemas. E aquele cipreste, em cuja sombra você se sentou, ele não está aqui crescendo desde o começo do mundo. Deu-se através de outro cipreste, parecido com o seu, mas que não era exatamente o mesmo. Além disso, eu gostaria de perguntar-lhe, Eclesiastes, o que de novo sob o Sol você pretende escrever agora. Será que são suplementos para as suas ideias, ou pode ser que esteja tentado a contrariá-las? Em seus poemas precedentes você menciona a alegria, será que é fugaz? Então será sobre isso o seu novo poema sob o Sol? Será que já tem anotações, alguns primeiros esboços? Provavelmente não dirá: “Escrevi tudo, não tenho mais nada para adicionar”. Isso não pode dizer nenhum poeta no mundo, menos ainda um poeta grandioso como você.

O mundo, o que quer que pensemos assustados com sua imensidão em face a nossa falta de força, exasperados com sua indiferença aos sofrimentos individuais das pessoas, dos animais e até das plantas, pois certamente à plantas é permitido sofrer; o que quer que pensemos sobre seus espaços transfixados pela radiação das estrelas, estrelas ao redor das quais acabamos de começar a descobrir planetas, ainda sem vida?, já sem vida? – não sabemos; o que quer que pensemos sobre esse teatro infinito, para o qual temos ingressos reservados, mas a validade desses ingressos é ridiculamente curta, restrita por duas datas determinadas; qualquer outra coisa que possamos pensar sobre esse mundo, ele é espetacular.

Mas, com a definição “espetacular”, cria-se certa armadilha lógica. Ainda nos surpreende aquilo que se desvia de uma norma conhecida, de certa obviedade com a qual nos acostumamos. Bem, de óbvio esse mundo não tem nada. Nossa surpresa é independente e  não resulta de comparações com coisa alguma.

Certamente, na fala comum, na qual não observamos todas as palavras, todos usamos as expressões: “mundo normal”, “vida normal”, “a sequencia normal de eventos”… Enquanto que na linguagem poética, em que se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e nenhuma nuvem no céu. Nenhum dia e nenhuma noite. E, acima de tudo, nenhuma existência nesse mundo.

Parece que os poetas terão sempre muito trabalho a ser feito.

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Discurso do Jantar – 10 de Dezembro de 1996

Não faz parte da rotina de ninguém receber o Prêmio Nobel. Da mesma forma, não faz parte dessa rotina exprimir seu reconhecimento. Na minha língua materna, como em cada língua estrangeira, há muitas palavras felizes para se escolher. Mas me parece que nesta ocasião a palavra mais simples é também a mais séria e a mais significativa: Obrigado, dziękuję, tack.