Publicamos hoje “Os homens da minha família”, de Yuri Amaury (1991, Curitiba), poeta, tradutor e doutorando em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná. O poema ficou em segundo lugar em sua categoria no Prêmio Off Flip de Literatura 2020. É autor de Agáloco|Transviscerações, que sai este ano pela Editora Urutau.


Os homens da minha família

Os homens da minha família
são brutais e sempre foram;

meu bisavô
que deu nome

ao meu pai
era militar

e meu avô
também.

O outro
filho de imigrantes

italianos
construiu um império

de peças de automóvel
com suor e sangue

dele e de outros.
O filho dele

me punha no colo
pra contar de quando

matou um boi
só com as mãos.

Meu pai ameaçou de morte
um homem no portão de casa.

Os homens da minha família
são caçadores e sempre foram;

havia facas e canivetes
nas gavetas da escrivaninha

e nas estantes
do escritório do meu avô,

e um rifle
atrás da porta.

O outro tinha
uma espingarda

pendurada na parede
e canivetes suíços

sobre a mesa
(quando todos

estavam na sala
depois do enterro,

eu subi as escadas
e peguei um).

Meu pai pegava
rãs no brejo

perto da casa
em que cresceu

no Guabirotuba,
quando a noite

era quente,
e matava sabiá

com cetra,
anos antes

de comprar um revólver
que ele guardava numa pochete

de couro preto até vir
o estatuto do desarmamento.

Os homens da minha família
são trágicos e sempre foram;

meu bisavô morreu
antes dos sessenta

de câncer na garganta
porque não tragava.

Os irmãos e filhos
do outro dilapidaram

todo o patrimônio
que ele deixou

e devia durar
mais vinte anos.

Meu avô foi expulso
do exército por desobedecer

ordens de atirar
contra manifestantes,

e o outro perdeu
todo o sangue do corpo

numa madrugada
na estrada entre Palmeira

e São João do Triunfo
quando um caminhão

na contramão
arrancou seu braço.

A cetra do meu pai
só mirou latinhas

e garrafas da cerveja
que o pai dele bebia

depois que derrubou
o primeiro sabiá.

Os homens da minha família
são eloquentes e sempre foram;

quando meu pai
ainda me levava

na casa dele,
meu avô contava

histórias dum tempo
em que o meu pai

tinha a minha idade.
O outro inventava

adivinhas e riu
encantado quando

eu acreditei
na história do boi.

Durante dez anos
ou mais meu pai

bebeu sua taça
de vinho toda

noite ao lado
da minha cama

lendo mais histórias
do que me lembro

na sua voz baixa
de professor.

E eu
que vejo

todo traço
deles no curso

dos meus anos,
que sinto o peso

do meu sangue
como quem sente

as primeiras gotas
duma chuva

que não deixa ver
o horizonte,

eu aprendo um pouco
sobre o que vem

e sobre o que veio
das raízes em sua

vida noturna.