Aproveito essa abertura, que comporta uma nota mais pessoal, para confessar que sou um leitor que leva muito em conta os títulos dos livros que lê. Tudo bem, não vou deixar de ler um livro sobre o qual estou curioso por não ir com o título, mas eles são um fator preponderante para eu me arriscar a comprar um livro do qual nunca ouvi falar ou cujo autor desconheço completamente. Minha memória não me ajudou a lembrar quem era Javier Cercas, embora parecesse que uma epifania estava a caminho, mas o título O ventre da baleia foi motivo suficiente para eu me aventurar nas suas páginas.

A história do livro possui uma trama bem simples. Tomás, um professor acadêmico que possui boas chances de se consolidar numa carreira longa, se reencontra, durante a ausência de sua mulher Luísa, com uma paixonite da adolescência, Cláudia Paredes. Na saída de uma sessão de cinema que fora exibido o filme Retrato de uma mulher, de Fritz Lang, os dois se viram e resolveram tomar um drinque para relembrar os tempos idos da adolescência.

Ocorre, pois, que o encontro se alonga, os dois jantam e resolvem, meio embriagados, passar a noite juntos. Depois das tórridas e adúlteras núpcias, os dois combinam de se encontrar mais vezes. Tomás resolve que já é hora de terminar seu casamento de cinco anos com Luísa, e Cláudia, ao que disse, não vive mais com o ex-marido, embora tenha com ele um filho.

Esse evento é o gatilho para que uma série de outros venham a ser desencadeados na vida de Tomás, que de uma hora para outra descobre que sua vaga na universidade está em perigo, que sua mulher (ferida pela descoberta da intenção de separação) está grávida, e que Cláudia, tão aberta a mais encontros, desapareceu misteriosamente. O encontro com Cláudia serviu como porta de entrada para o ventre da baleia.

A história é contada por Tomás, de modo que também nossas percepções repousem sobre sua capacidade de nos pôr a par do que está acontecendo. Além disso, as suposições malucas que ele cultiva e toma por verdadeiras são o único fragmento de realidade ao qual temos acesso para que entendamos como uma situação aparentemente “banal” (tudo bem, um affair extra-conjugal não é banal, mas parece, pelo menos perto da insólita situação que a ele se segue) desemboque no arranjo surreal em que ele parece ter se metido.

Tomás, cuja sociabilidade está profundamente ligada ao círculo acadêmico do qual faz parte, enfeixa em seu relato expedientes da burocracia universitária e o universo complexo que é essa instituição. Não bastasse a delicada situação em que se metera, Tomás ainda tem que lidar com greves de alunos, definições de perfil de vaga, rusgas entre professores e um cronograma de atividades que ele insiste em descumprir.

Mas não só de institucionalidades vive Tomás, pois ele usa sua narrativa para falar das conversas que mantém com Marcelo, um emérito pesquisador de literatura que o ajuda a desconstruir a literatura de escritores espanhóis, principalmente Antônio Azorín; e dos filosóficos comentários da tertúlia literária que participa, que entre os convivas tem o próprio autor do livro, Javier Cercas.

Tudo isso, entretanto, encontra-se entranhado numa questão mais pujante no momento, que é o desaparecimento de Cláudia após o encontro deles. Hipóteses são aventadas, que vão desde o suicídio até sequestro passando por assassinato. A trama incrível que se desenrola a partir do encontro existe, até onde nos é possível conhecê-la, na cabeça de Tomás. Ela pode ser tanto uma cruel realidade quanto um completo absurdo, fruto da cabeça do narrador.

Apesar dessa experiência extrema, o livro não alcança notas tão altas no que tange à tensão. A dúvida é o que sustenta a história, pois é o desfecho desse desaparecimento que queremos ver, para ver se é possível ou não que a linha do destino de Tomás tenha sido de tal modo torcida e desfiada.

Em que pesem todos os pesares, Cercas nos proporciona lampejos de brilhantismo nos momentos mais improváveis, sobre a memória e a subjetividade, ou sobre o factível e o ficcional (corporificados na história e na literatura, digamos assim); como, por exemplo, no seguinte trecho:

“(…) a realidade não é outra coisa se não o relato que alguém está fazendo, e, se o narrador desaparece, a realidade também desaparecerá com ele. O mundo depende desse narrador. A realidade existe porque alguém a conta. Inventamos constantemente o presente; e mais ainda o passado.” (p. 215)

Nesse:

“A felicidade não cobra motivo: ninguém se pergunta porque é feliz; simplesmente é, e basta. Com a desgraça ocorre o contrário: sempre buscamos motivos que a justifiquem, como se a felicidade fosse o nosso destino natural, aquilo que nos é devido, e a desgraça, um desvio perverso cujas causas nos esforçamos em vão para desencavar.” (p. 214)

ou ainda nesse, quando fala sobre as diferenças entre um escritor e um romancista:

“Um escritor é um artesão; um romancista é um inventor. Encontrar um bom artesão é muito difícil; quase tão difícil que encontrar um bom inventor. Mas que os coexistam numa mesma pessoa é quase um milagre.” (p. 121)

Acho que esse é o efeito colateral de levar os títulos demasiadamente em consideração: você cria tal expectativa sobre o livro que está por trás dele, que acaba se tornando muito criterioso com relação à história, de modo que boas histórias como essa de O ventre da baleia pareçam ser menos do que realmente são.