Faz pouco tempo que reli Boêmios errantes (1935), de John Steinbeck, em parte foi por isso que a lembrança dele era tão forte enquanto lia Miguel Street, de V.S. Naipaul. Não são rememorações gratuitas, no entanto. Muito do sentimento que Steinbeck teve ao escrever o livro de 1935 está presente na obra de Naipaul de 1959. Ambos são livros que retratam a vida de vagabundos e pessoas que se encontram em níveis sociais mais baixos sem perder a candura. Ambos são, também, embalados por uma simpatia solidária com as agruras da vida desses sujeitos.

O livro de Naipaul se passa na rua que lhe dá título, em Port of Spain, capital de Trinidad e Tobago; e narra o dia a dia de seus moradores a partir do ponto de vista de uma criança. Ela capta tudo com seus olhos e transfere para o papel narrativas em que os personagens repetem os feitos de suas “matrizes” reais. É uma narrativa simples, mas muito gostosa de ser lida.

Os habitantes de Miguel Street aparecem sob novas vestes no livro, são investidos do poder da literatura, de modo que suas ações tomem um vulto grandioso e pleno de significado. Naipaul se esforça em emitir poucos juízos de valor acerca desses sujeitos, afinal, julgamentos são algo ao qual eles já estão submetidos constantemente.

Não existe uma trama que percorra todas as suas histórias, são relatos independentes, mas que se tocam em diversos pontos. O foco do livro não é a trama em si, mas o desenvolvimento dos personagens. O que junta todos eles é o fato de que todos foram presenciados pelo menino que nos narra suas histórias – provavelmente um alter-ego do próprio Naipaul.

Existe, por exemplo, Popo (sim, eu também lembrei do personagem do Dragon Ball), que faz trabalhos em madeira e é dono de uma intrigante abordagem filosófica em relação ao mundo, que o leva a uma contemplação quase extrema. Há Bogart (referência ao galã de Casablanca), um jogador de paciência inveterado, que some de vez em quando, volta, conta algumas histórias a respeito de suas viagens e volta a sumir. Há ainda Hat, um homem que, junto com o narrador, observa todos os eventos de Miguel Street, tecendo comentários sarcásticos e reprobatórios em relação a quase todos eles.

Mas não são só esses: existe Morgan, um homem que procura fazer piada com tudo; Wordsworth, um poeta que trabalha no maior poema de todos os tempo, mas que só escreve um verso por dia; Eddoes, gari que tem o maior orgulho de empurrar o carrinho de limpeza pela cidade; Laura, a mulher que tinha oito filhos com sete homens diferentes e assim por diante. A profusão de personagens e de trajetórias individuais é bastante grande.

Naipaul coloca em perspectiva os comuns preconceitos que rondam lugares como Miguel Street, bem como o próprio espectro de atraso de desenvolvimento a qual estão sujeitos países da América Latina. Ele quer promover a chance de reconsiderar o automatismo desses julgamentos e mostrar que existem mais “mistérios” ali do que pode supor nossa vã filosofia.

Apesar das agruras que marcam a vida de todos os personagens de Miguel Street, eles não perdem sua humanidade. O que fazem e como concebem a realidade e suas vidas são parte de um conjunto de experiências que, embora calcadas na precariedade, não os colocam em grau de inferioridade quando se trata de solidariedade e amor pelo próximo. A exemplo do que acontece em Boêmios errantes, existe uma espécie de código de honra, uma moral e uma conduta modelar que estrutura a própria forma deles se colocarem no mundo em relação aos outros e a si próprios.

É curioso, por exemplo, contrapor a vida de qualquer um desses sujeitos empobrecidos à de Michael Packer, do livro Cosmópolis, de Don DeLillo. Packer tem acesso a milhões diariamente, pode comprar tudo o que puder conceber e ainda assim terá dinheiro, enquanto que os moradores de Miguel Street vivem à míngua cotidianamente, desafiando, como diz Naipaul, nossa capacidade de entender como conseguem alimentos. No entanto, Packer vive num vazio existencial melancólico que nem de perto se assemelha a nenhum dos personagens de Naipaul. Entre Wall Street e Miguel Street há um abismo muito mais vasto do que o meramente pecuniário.

Creio que os intentos do escritor podem ser entrevistos na seguinte passagem (que está também na contracapa do livro):

“Um estranho podia passar de carro pela Miguel Street e dizer apenas: ‘Favela!’, porque não consegui a enxergar mais nada. No entanto nós que morávamos lá víamos nossa rua como um mundo, onde cada um era completamente diferente do resto. Homem-homem era maluco; George era burro; Pé Grande era brigão; Hat era um aventureiro; Popo era um filósofo; e Morgan era nosso comediante.” (p. 80)