Coincidentemente uma semana antes de Mario Vargas Llosa ser laureado com o Nobel de Literatura, estive com uma de suas obras em mãos, A festa do bode. Aproveitando então a ocasião, coloco aqui minha resenha sobre o livro.

Há algum tempo atrás tive oportunidade de ler A fantástica vida breve de Oscar Wao, do dominicano Junot Díaz, um livro que narra as desventuras de várias gerações de uma família que viveu sob a sombra aterrorizante do regime trujillista na República Dominicana. A festa do bode certamente serviu de inspiração para que Junot Díaz escrevesse sua obra. Quem porventura leu o livro de Junot Díaz com certeza vai adorar o livro de Llosa.

Publicada no ano de 2000 pela editora Mandarim, A festa do bode também conta histórias que tem como elo a ditadura de Rafael Leônidas Trujillo Molina, O Chefe, que governou a República Dominicana entre 1939 e 1961. O poder desse ditador era tamanho que durante seu governo, Santo Domingo, a capital do país, deixou de se chamar assim para chamar-se Ciudad Trujillo. Seus negócios iam desde os ramos legais até os ilegais, e seu clã era dono de uma farta fatia da economia do país, de modo que sua sombra pairava sobre os mais diversos aspectos da vida dominicana.

O terror que a figura dele impunha deixou indeléveis marcas na História e nas pessoas que a produzem. A situação da República Dominicana se assemelhava bastante a de outros países na América Latina, basta notar como nesse período (alguns anos antes ou depois) houveram outros generais e ditadores no governo, tendo, às vezes, presidentes-fantoches como simulacro de democracia e de legalidade (Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Chile, Argentina, Brasil etc.).

O livro é narrado a partir de três pontos de vista, o que deixa a história com um ritmo frenético de acontecimentos, pois vivenciamos três espaços diferentes e três tempos diferentes, facetas dos desdobramentos do trujillismo e o terror que ele impôs a população dominicana.

Um desses prismas é de Urânia Cabral, filha de um político da época do trujillismo, que “caiu em desgraça” com o Chefe (Junot Díaz o chama de “El Jefe”) e é obrigado a passar por um purgatório pisando em ovos com o famigerado ditador. O diferencial é que a história se passa anos depois de o trujillismo ter acabado e o pai de Urânia estar inválido, ao passo que a filha vem a ele para desferir toda a sua mágoa pelo que foi obrigada a passar, como que querendo livrar-se desse tormento que ainda a assola.

O outro prisma é de um grupo de revoltosos que pretende matar o Bode (código para Trujillo), símbolo de uma festa comemorada pelos dominicanos; uma verdadeira Operação Valquíria na América Latina. O terror e o misticismo que envolvem a figura do ditador, como um verdadeiro ser de outro mundo, emissário do mal na Terra é mostrada pelos revoltosos, que, apesar de acreditarem que ao matarem Trujillo estariam fazendo um bem para o povo dominicano, discutem entre si as lendas que circundam a misteriosa e aterrorizante figura do Chefe.

O terceiro ponto de vista é de dentro da própria cúpula do governo trujillista, e une desde aspectos da política do ditador, seus mandos, desmandos e esquemas; até aspectos da tortura, policiamento, fiscalização, rusgas com a Igreja Católica etc. Nesse âmbito da história conhecemos desde o presidente Balaguer até o alto comando do exército e os capangas do governo, da economia a repressão.

Mario Vargas Llosa usa e abusa da narrativa e do ritmo instigante com que novos eventos, personagens e problemas vão sendo introduzidos na história. O autor junta personagens históricos com ficcionais, aliando a História à ficção e criando um romance com originalidade e que pretende mostrar facetas nada agradáveis das ditaduras na América Latina, tema, aliás, de muitas discussões até hoje em dia.

O clima de terror e incerteza que Llosa consegue criar para a República Dominicana de Trujillo, e a forma como ele traduz diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos fazem de A festa do bode a tentativa de expurgo de um fantasma que rondou e aterrorizou a América Latina ao longo do século XX. O livro é a visitação de um temor passado cuja sombra ainda se faz sentir nos que por ele passaram.

A solidariedade para com os que sofreram com esse regime, sua crítica a esse governo que atentou contra princípios democráticos, a sensibilidade e a firmeza com que tratou com esse delicado tema, juntamente a capacidade narrativa de Llosa fazem a escolha da Academia Sueca se justificar.