Em todas as fontes que consultei a respeito da literatura norte-americana dos anos 30, o nome de Erskine Caldwell (1903-1987) estava presente. Fosse com um reconhecimento valoroso – comumente associado a sua obra-prima Tobbaco road (A estrada do tabaco) – ou uma mera listagem ao lado de outros também arrolados – Sherwood Anderson, John dos Passos, Paul Green, Richard Wright e outros –, esse autor figurava entre os que foram lembrados. Como parte de minha pesquisa, resolvi enveredar por outras obras do período que não somente as de John Steinbeck e eis que me deparei com O pregador (Journeyman), romance de Caldwell publicado em 1935.
O livro é bem curto e bem simples. Conta de forma linear uma série de acontecimentos que se passam no povoado de Rocky Comfort, na Geórgia, e que se iniciaram com a chegada de um pregador de nome Semon Dye. Ele chega às terras de Clay Horey quando seu automóvel estraga e, evocando as prerrogativas que um pregador possui perante um povo minimamente crente, se instala na casa de Clay, passando a habitá-la juntamente com Dene, mulher do proprietário.
Esse evento marca o início da trama. Talvez nos pareça algo insólito essa acolhida, e também o pareceu para Clay, não porque não fosse costume dele receber amigavelmente emissários dos Senhor, mas sim porque o pregador se apresentou logo de início muito à vontade, não esperando convite nem qualquer tipo de formalidade convidativa.
Na propriedade poeirenta de Clay moram também alguns negros que trabalham para ele, cuidando, inclusive, do filho que possui com sua ex-mulher, Lorene, que agora se prostitui numa cidade próxima, Jacksonville. O tratamento despendido aos negros é aviltante, pois concepções escravistas permeiam a visão de mundo tanto de Clay como de Semon, mas encontram-se mais profundamente arraigadas nesse do que naquele.
A presença incômoda do pregador deixa tanto Clay quanto o leitor tensos. Ele parece estar de olho em Dene, no carro de Clay e tudo o que lhe pertence. O pregador age como se tudo na casa lhe pertencesse, tendo mais primazia sobre as pessoas do que elas próprias. Além do mais, Semon usa de sua persuasão inacreditável e de seu status para conseguir tudo o que quer, revelando uma perfídia aproveitadora revoltante.
Parece que estamos diante do religioso Harry Powell do clássico filme de Charles Laughton, O mensageiro do diabo (1955). O colarinho de religioso lhe serve de escudo para agir de formas estranhas, que driblam quaisquer reprimendas e que contradizem as supostas moralidades às quais um representante da igreja, mais do que qualquer um, está submetido.
Enervamo-nos com a fleuma de Clay, que pouco faz para tirar o homem de dentro de sua casa, com a inocência de Dene e do vizinho de Clay, Tom, que satisfazem todas as vontades de Semon; e, finalmente, com o próprio pregador, malicioso e aproveitador, mas cuja figura tem grande vulto em comunidades como a de Rocky Comfort.
Erskine Caldwell cria uma espécie de pesadelo de impotência. Não importa o quanto queiramos nos livrar de Semon, parece que o senso comum nos condena ao mesmo tempo em que o absolve. É como se gritássemos, mas ninguém nos ouvisse. E enquanto isso, Semon vai ludibriando a todos bem em frente a nossos olhos incapazes de fazer algo a respeito.
Explorando diferentes facetas do universo dessas pequenas vilas, Caldwell coloca em questão, com uma crítica velada, os valores que orientam as vidas desses homens, mostrando-lhes as fragilidades e sua vulnerabilidade diante de falastrões e golpistas, como Semon Dye, que se esconde por detrás da igreja para cometer suas falcatruas. Há um misto de pena e impaciência por parte de Caldwell, pois se por um lado esses homens do campo são exemplos de boa conduta, por outro essa mesma bondade é seu calcanhar de Aquiles, o motivo pelo qual podem ser ludibriados.
A catarse religiosa coletiva, que marca a parte final do livro, é um exemplo disso. Num espetáculo mostrado como patético, Semon se consolida na comunidade e tem a sua mercê toda a “opinião pública”. Assim é que ele consegue levar a cabo suas maquinações perturbadoras.
O pregador não é um grande livro, mas mostra a narrativa direta e enxuta de Caldwell e certamente nos desperta sentimentos em relação ao que conta, sejam eles de piedade ou de indignação.
De todos os livros que li de E. Caldwell, “O Pregador”, na minha opinião, é um livro poderoso e forte ´levando-nos a reflectir sobre o poder que algumas pessoas exercem sobre as mais fracas: tanto em questões de religião, de abusos de qualquer tipo e particularmente a relação rácica branco/negro, posta a nú em tantos romances deste escritor.
Na minha opinião o melhor romance dele chama-se Chão Trágico.