Leia a primeira parte da resenha.
Minos, o juiz infernal que encarcera as almas tantos forem os giros da serpente que lhe cinge, conforme observa Dante quando se adentra em sua viagem espetacular… E não apenas Minos, mas Fedra também possuindo uma estirpe que possui raízes no Sol, um Deus que é constantemente evocado e temido pelo fato de sua luz lançar ao mundo e revelar a este mesmo mundo o recôndito de toda criatura… “La fille de Minos et de Pasiphaé”: um dos versos mais famosos da peça inteira resume as razões hereditárias do crime horrendo que Fedra cogita em sua cabeça e que revela a Enone, sua criada e aparentemente a vilã de toda a peça.
Mas não se pode colocar, afinal, tamanha carga numa personagem como esta, pois Enone: “Para servi-la [a Fedra] eu fiz tudo e deixei tudo: / E recebo esse prêmio! Eu bem o mereci.” O erro trágico de Fedra está na própria Fedra e está em seu destino massacrante: ou Fedra morre ou se abre e faz o que durante a peça inteira é a tendência à eversão: “Graças aos céus minhas mãos estão limpas. / Fosse tão puro assim o meu coração”.
E quando Fedra revela, e se permite dizer o nome do amado (ou induz Enone dizer [“Tu o disseste”]), o cataclismo estava completo e tudo a partir de então seria destruição, ou, como diz Otelo, “Chaos is come again”.
Mas as notícias da possível morte de Teseu jogam luzes na esperança de Fedra, que pretende se esposar com Hipólito e revelar agora a seu amado o seu amor. Iria agravar seu erro, pois iria confiar numa palavra que não tinha nenhuma confirmação: tanto que, no começo da peça, Hipólito revela a Terâmeno seu desejo de procurar seu pai em regiões ermas e inabitadas, colocando sua pele em perigo para descobrir o paradeiro do pai.
Pois Hipólito é um rapaz sério, aparentemente inabalável pelo amor (“Exemplo memorável de um orgulho insolente”) e que busca as glórias do pai, exceto aquelas que se mostram indignas acerca de sua libidinosidade para com o amor (“Essa metade indigna de uma vida tão bela!”). Mas Hipólito já havia sido acertado pelas flechas indeléveis do Cupido, e agora ama a Arícia, exilada por seu pai Teseu em razão de seu passado, e digna de seu ódio perpétuo… Hipólito também se via obrigado, como Fedra e de forma diametralmente oposta e ao mesmo tempo complementar, a revelar seu interior.
Primeiro revela para Arícia, numa cena de falas de imorredoura beleza que só encontram eco nas mais belas e verdadeiras juras de amor. Mas deveria também revelar a seu pai, Teseu, um guerreiro honrável por seus feitos heroicos (e um sucessor de Hércules) que havia desaparecido e sido dado como morto: mas os boatos eram falsos e Teseu estava de volta, trazendo consigo os horrores do Inferno. (O interessante desta passagem é que Teseu volta de uma região que Terâmeno havia dito que já havia visitado e procurado. O que põe em cheque a imagem graciosa e boa do lacaio de Hipólito).
Pobre Teseu! Ou não tão pobre assim, pois Fedra, agravando ainda mais o horror de seu suplício existencial, já havia revelado a Hipólito de seu amor, o que espantou o jovem príncipe de tal forma a desembainhar sua espada e se deixar pálido, transtornado… “Ah! Cruel! Me entendeste demasiado bem!”, exclama Fedra para a exclamação de confiança de Hipólito: “Senhora, me perdoa. Confesso, com rubor, / Ter entendido errado palavras inocentes”.
Pois, enquanto o processo trágico de Fedra já havia sido desencadeado em seu nível maior, prestes a não poder mais ser retornado, o mais comum é que ele leve consigo também as outras personagens principais para a perdição absoluta, descambando nos horrores funestos que Teseu traz consigo, advindo das entranhas do Inferno. Os conselhos de Enone, para que tentasse converter a situação atual, são provavelmente o que leva alguns a acreditarem que ela é uma espécie de Iago na totalidade da obra, quando, na verdade, os erros pessoais consecutivos e generalizados destroem a harmonia espantosa que a peça ostentava. Ou se algum dia ostentou.
Teseu observa esta tensão, vê como algo distante e próximo ao mesmo tempo, como Otelo, a catástrofe: “Que significam essas palavras que gelaram meu sangue?” O pedido de Hipólito, de se exilar, assustara o pai: e o pai seria ainda mais assustado pela revelação de Enone, pois as forças de Fedra já estão extenuadas, de que Hipólito seduzira sua esposa.
O clima de tensão não tem mais retorno. Tudo é definitivo. A segunda cena do quarto ato é um monumento iracundo que poucos paralelos encontra na história da arte. O verso mais famoso da peça inteira, um verdadeiro diamante, “Le jour n’est pas plus pur que le fond de mon cœur”, ecoa em todas as partes e faz com que seu som reverbere até mesmo no vazio e no passado, naquelas já citadas palavras de Fedra. A revelação de Hipólito de seu amor por Arícia agora é inútil: agora, que tudo estava apenas esperando a hora do estraçalhamento. Se Fedra errara, se revelara seu verbo na sua totalidade, e se agora não tinha mais o domínio de seus atos e ações, e nem mesmo de sua própria palavra, resta-lhe apenas o último suspiro de resistir a um novo conselho de Enone de aceitar que as relações incestuosas são naturais e inerentes à condição humana, e a expulsa, e a execra: mas, talvez e quiçá, quem dirá que o último conselho de Enone não fosse também o único verdadeiro?
Teseu evocara Netuno, graças a um favor deste para com aquele (um favor de morte dado quando na iminência da morte), com o objetivo de vingar o pai:
“Chegou o dia – hoje eu te invoco. Vinga um pai infeliz;
Eu abandono esse traidor a toda a tua cólera;
Sufoca em seu sangue esses desejos sujos;
Por tua fúria Teseu medirá tua justiça.”
Agora Teseu também incorrera em seu erro trágico, e o círculo estava fechado para o quinto ato, o desfecho hórrido da tragédia, onde Hipólito revela seu exílio para Arícia e, agora que estava na mesma condição de exilado que sua amada, poderia realizar os votos de amor num lugar afastado e obscuro:
“Nas portas de Tresena, entre antigos sepulcros
Dos príncipes de minha raça,
Há um templo sagrado que apavora os perjuros.
Ali nenhum mortal ousa jurar em falso,
Pois recebe o castigo imediato.”
Queriam retornar àquela condição retraída em que seus desejos adormeciam e repousavam. Não seria possível, assim como não seria mais possíveis as tentativas de Teseu, como Creon em Antígone, de reverter o seu julgamento errôneo baseado em rumores (como Fedra fizera antes) e sua invocação divina, pois que Enone havia se jogado ao mar e Hipólito, na boca de Terâmeno e num episódio de rigor épico transcendental, havia lutado com um monstro marinho e o havia ceifado da vida, ganhando a glória tanto pretendida, para depois morrer preso aos seus cavalos como o corpo de Heitor circundou e banhou os muros de Troia no coche sanguissedento de Aquiles.
É o fim. Teseu descobre seu erro, Hipólito está morto e Fedra aparece pela última vez, após ter ingerido veneno, para revelar para a última (at least but not…?) pessoa seus atos e seus desejos, completando um ciclo trágico em versos comoventes e imortais:
“A morte, mergulhando meus olhos no escuro,
Devolve à luz do dia o seu brilho mais puro.”
Agora Fedra podia voltar para a condição de silenciar sua estirpe enlameada na luxúria, pois que havia exteriorizado e, por isso mesmo, perdido, seus ímpetos mais íntimos e impetuosos.
E o leitor já está pronto para perceber que, afinal, aquilo que rege as personagens, como nas tragédias shakespearianas e no teatro grego, são forças estranhas e invencíveis que tornam até mesmo o fundo do coração mais puro no horror do mais cruel esconjuro.
Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em 1992, Goiânia, gosta de literatura clássica em suas várias acepções, mas em especial daquela forma de arte que consiga contar uma boa história, fruto de uma boa reflexão, numa boa linguagem e com uma boa construção e coesão interna e externa: e que consiga, sendo assim, ser imorredoura até que o coração pare ou atrofie. Não é formado em nada e não está cursando nada; é um vestibulando e um concursando; é um apaixonado; é um leitor.