O século XX na Holanda, literariamente, começa em 1911. Como assim? Apesar de Louis Couperus ter morrido em 1923, a crítica o considera um autor típico do XIX. O escritor que dá o pontapé inicial no século passado é Nescio.

 Mas quem é esse tal Nescio?! É somente a figura mais influente dos últimos cem anos. O curioso é que ele não escreveu nenhum romance, unicamente alguns poucos contos (geralmente suas edições têm apenas 200 páginas). Nescio é o exato oposto de Couperus. Couperus é em tudo elegante, formal, arcaico; Nescio é em tudo despojado, coloquial, moderno. Seu principal conto, O parasita (1911) – sobre um sujeito que vive à custa dos outros –, é uma obra-prima da contística europeia da primeira metade do século XX. Nescio é um Tchekhov holandês. Seminal e leitura obrigatória para os amantes de contos.

Apesar da narrativa de Nescio ser considerada, muitas vezes, uma prosa poética, o verdadeiro poeta que escrevia prosa é Jan Jacob Slauerhoff. Para colocar “o pingo no i”: Slauerhoff é o Rimbaud da Holanda. Juntamente com sua poesia, ele possui dois livros de prosa que entram no cânone daquele país, um de contos e um romance.

Espuma e cinza (1930) reúne cinco contos longos; cada um se passa em vários países: Espanha, China, Rússia, Turquia, Estados Unidos, Grécia, entre outros. O que se destaca em Slauerhoff é a melancolia e o tormento dos personagens, que parecem não pertencer a nenhum lugar. O encanto com que Slauerhoff narra esses personagens em queda livre dão ao leitor uma sensação estranha: é como apreciar a beleza do degelo de uma montanha gigante ou a plasticidade das labaredas de um enorme incêndio.

No romance O reino proibido (1932), Slauerhoff conta toda a trajetória de Camões. Seu enamoramento proibido, sua expulsão de Portugal, sua leitura da Odisséia, de Homero, no caminho à Índia, a escritura de Os Lusíadas, a chegada à Macau e a guerra dos nativos com os holandeses. Porém, quase no final do livro é que vem a surpresa. Há um corte abrupto de tempo e vemos a Macau de hoje (1932, óbvio) pelos olhos de um irlandês que “incorpora” Camões! Otto Maria Carpeaux achava este livro “esquisitíssimo”. O reino proibido é um romance esquisitíssimo, sim, mas interessantíssimo.

O último grande autor do entre guerras foi Ferdinand Bordewijk. Dono de um estilo seco, equivalente a Camus, seu principal romance é o intrigante Caráter (1938). O subtítulo diz tudo: um romance de pai e filho. Filho bastardo de um pai extremamente autoritário, absolutamente tudo, tudo o que o filho tenta conseguir, o pai destrói. O pai alega que faz isso a fim preparar o filho para a dureza da vida. Assim como há no Brasil grande debate se Capitu traiu Bentinho ou não, na Holanda a discussão é se o pai estraçalha o filho com o propósito acima referido ou se o faz pelo fato de ser um filho ilegítimo. Caráter é um livro bastante instigante e que a cada leitura faz você mudar de opinião sobre a verdadeira motivação do pai.

Durante sete anos não se produz mais nada de relevante. É a Segunda Guerra.

Em 1947, dois anos após o final dos bombardeios na Holanda, caem duas bombas literárias. Uma não-ficção e uma ficção.

O primeiro é A casa dos fundos, de Anne Frank. Apesar do pai da menina ter dado um título aos seus diários, no mundo inteiro é conhecido por O diário de Anne Frank. É o livro em língua holandesa mais lido e traduzido no planeta. Por ser não-ficção, não entrarei em detalhes, apesar de valer imensamente a pena lê-lo.

O segundo é As noites, de Gerard Reve. A comparação com O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, é certeira (sendo que Reve é anterior a Salinger). A história de Frits van Egters, um homossexual de 23 anos que ainda mora com os pais, é contada da forma mais franca possível. Um marco nas letras europeias, os holandeses têm até hoje ressentimento pelo livro não ter tido – fora de seu país – a repercussão que O apanhador… teve; boa parte disso se deve ao fato da obra ser considerada quase intraduzível, pois há várias gírias, expressões e coloquialismos. As noites é, talvez, o grande romance holandês do século XX.

Se Gerard Reve é considerado o primeiro dos três grandes escritores holandeses do pós-guerra, o segundo é Willem Frederik Hermans. Com vários clássicos em sua bibliografia, a grande porta de entrada deste escritor é Nunca mais dormir (1966). Hermans possui uma secura semelhante à de Bordewijk, mas também tem um tom (propositalmente) distraído. É como se o narrador não estivesse contando que é um geólogo que quer fazer fama ao ir à fronteira entre a Noruega e a Finlândia e comprovar sua teoria de que uma cratera foi provocada por um meteorito. Claro que a expedição naquelas gélidas plagas dá errado. Um romance extremamente sarcástico e irônico.

Se W. F. Hermans é o segundo dos três grandes do pós-guerra, o terceiro é Harry Mulisch. De todos os gênios holandeses do XIX e do XX, Mulisch é o único que tem tradução já publicada no Brasil (O atentado, José Olympio, 2007). Apesar de O atentado ser brilhante, a grande obra de Mulisch é O descobrimento do céu (1992). Um calhamaço de mais de 900 páginas, O descobrimento do céu conta uma história tão simples quanto ambiciosa. Deus quer ter de volta as tábuas dos Dez Mandamentos e, para obtê-las, envia um anjo à Terra. Acompanhamos, então, as vidas de três amigos (dois homens e uma mulher), que vivem um triângulo amoroso. A mulher engravida e dá luz a um menino (o anjo), e aí começa a busca pelas tábuas.

Harry Mulisch é um misto de Garcia Márquez com Umberto Eco. Tem a mão para contar histórias do primeiro e a erudição do segundo. Somente um grande autor conseguiria contar uma história que dura quase 70 anos, passando por todos os grandes eventos sociais/políticos do século XX, sem deixá-la “cair”. De todos os autores holandeses que já foram cogitados para ganhar o Nobel (Louis Couperus, Gerard Reve, W. F. Hermans, Cees Nooteboom), Mulisch era o que mais tinha chances de ganhar. Pena que foi o último dos grandes holandeses a morrer, em 2010.

Sobre o autor: Daniel Dago é tradutor de holandês. Traduziu Sobre pessoas velhas e coisas que passam…, de Louis Couperus, contos de J. J. Slauerhoff, Nescio, Louis Couperus (todos ainda não publicados) e atualmente traduz Max Havelaar, de Multatuli.