Pelos tempos da Segunda Guerra Mundial, a publicação de obras contra regimes totalitários evidenciava todo o cunho fascista de todas as ações dos governos envolvidos, especialmente na Alemanha e na União Soviética. Logo depois, já no pós-guerra, escritores vários nos países então comunistas do leste europeu também viram suas obras serem censuradas por serem “subversivas”. Elas eram subversivas por denunciarem, mesmo que sorrateiramente, as agruras de se viver sob o jugo de um ditador. Hoje, ainda há certamente governos considerados “totalitários” ou “antidemocráticos” pelo mundo, sendo a Síria o exemplo mais recente nos jornais. Há ainda aqueles que afirmam que os governos ocidentais que os julgam “fascistas” também atentam contra a democracia.

Percebe-se que o cenário ainda é o mesmo da época das grandes guerras, ainda que tudo pareça menos trágico e exacerbado agora. Guerras e nacionalismos ainda são o leitmotiv do grande discurso dos governos autointitulados democráticos da Europa e das Américas, o que nos faz pensar se podemos falar de democracia não vivendo em um país que mereça essa qualificação. Nesse cenário, obras como Um homem: Klaus Klump (2003), do português Gonçalo M. Tavares, surgem como fonte para reflexão. Esse romance não se refere essencialmente a Portugal, mas sim à realidade humana como um todo.

Digo que a obra de Gonçalo é “mundial” justamente para retirar-lhe qualquer caráter necessariamente “português”. É claro que o escritor, tendo crescido nesse país, certamente tem sua história como referência, mas parece evitar tratá-la como parâmetro principal. Seu romance, o primeiro da série “O reino”, é ambientado em um contexto violento e fascista, assim como Jerusalém (2004), com a diferença de enfoque, é claro.  Em Um homem: Klaus Klump, temos a trajetória de Klaus bem como de Johana, Herthe, Clako e outros, mas todos esses circulam pelo mesmo ambiente opressor e são oprimidos de diferentes modos, porém sob a mesma justificativa: a guerra. Em Jerusalém, a violência provém das relações de dominação e violência entre os homens, mas não há essa estado de sítio declarado como no romance de Klaus.

Nesse primeiro volume de “O reino”, não se sabe em que país eles estão nem mesmo quem o governa nem as razões e os objetivos da guerra, apenas sabemos de seus efeitos: a violência institucionalizada. Klaus é preso por atividades subversivas sobre as quais o leitor nada descobre; as mulheres da trama são abusadas e submetidas às vontades dos homens, especialmente dos soldados, a todo tempo; outros homens, não pertencentes à burguesia ou às forças armadas, são, cada um a seu modo, submetidos às vontades do governo sempre sob a justificativa da guerra que dura anos e parece cada vez mais se firmar como cotidiano. Klaus não é o protagonista dessa narrativa, ao contrário do que seu título nos faz pensar; ele é apenas um desses homens anulados por um poder maior.

Quando a guerra acaba, tudo se assemelha a uma tragédia para todos aqueles, dominadores ou dominantes, que percebem a irracionalidade de sua sociedade. O tom “universal” da obra de Gonçalo se evidencia em momentos como esses, em que nada há de específico na situação daquelas pessoas, já que suas vidas, obviamente fictícias, também acontecem em uma nação aparentemente fictícia, porém tão parecida a tantas outras da história mundial. Sua guerra é igual a de todas os países até hoje.

Ainda assim, é interessante o fato de Gonçalo nomear seus personagens com nomes de raiz germânica ou eslava, o que nos remete historicamente à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria, o que talvez faça com que esse totalitarismo se firme mais facilmente como realista. Apesar disso, essa hipótese se manterá como hipótese, afinal, como já foi dito, nada indica que esse romance tenha a intenção de apresentar em particular a Europa durante as guerras. Assim como Jerusalém, trata-se de uma narrativa fragmentada que expõe várias personagens, algumas desconhecidas entre si, porém todas ligadas sob uma razão: a violência.