Depois de ter experimentado o sarcasmo ácido de Saramago em relação ao cristianismo em Ensaio sobre a cegueira e Memorial do convento – ainda que de forma relativamente velada – imaginei que Caim, romance publicado em 2009, com sua referência direta a um personagem bíblico tão controverso, seria muito interessante para conhecer melhor a visão do autor em relação a essa religião. Não me enganei, o livro nos ajuda a entender como Saramago enxergava essas questões e como não poupou palavras para colocar em xeque pensamentos ligados a tal tradição religiosa.

O romance começa com a história bíblica, o criacionismo, com Deus manifestando seu poder através da criação de tudo o que existe sobre a Terra. Saramago já começa a desfiar seu humor ferino contra os feitos divinos, dizendo que, sendo o homem o único ser a não falar, Deus havia enfiado goela abaixo uma língua e o feito falar. Esse evento marca profundamente a história subsequente, pois vai ser precisamente através da abertura desse canal linguístico que o homem irá manifestar sua frequente oposição aos mandos e desmandos de Deus.

É no próprio Jardim do Éden que começam os questionamentos: se Deus não queria que os frutos da árvore do bem e do mal fossem provados, porque havia Ele, cujo poder é infinito bem como as possibilidades de seu uso, deixado-a lá, a vista tanto de Adão quanto de Eva? O julgamento divino a que Saramago submete a providência acaba por encontrar já aí manifestação de arbitrariedade.

Segue-se ao Éden a clássica expulsão, resultado do pecado original, e o aumento gradativo da prole de Adão e Eva, tendo como os primeiros rebentos Caim e Abel. Como consta na Bíblia, Caim mata Abel e passa a ser atormentado pelo grave pecado que havia cometido. Embora arrependido de tê-lo feito, Caim acusa Deus de não intervir no curso dos acontecimentos, tirando-lhe a faca da mão ou feito qualquer coisa, afinal, Seu poder é infinito.

Do desentendimento com Deus, Caim passa a errar pela Terra e a conhecer vários personagens do Antigo Testamento, desde Lilith até Moisés, de Abrãao a Noé, e estar presente em diversos momentos famosos das histórias da Bíblia, como a derrubada das muralhas de Jericó, a construção da Torre de Babel, o extermínio de Sodoma e Gomorra, a construção da Arca para a chegada do dilúvio e assim por diante. Caim percorre boa parte do Antigo Testamento mostrando-o sob diferente prisma.

Caim é uma tonitruante subversão das crenças cristãs. Justamente por estar sendo enxergada de um ponto de vista diferente – o de Caim – e não o dos cronistas do Antigo Testamento – esses crentes da grandeza de Deus – a história nos parece bem outra. E não por acaso. Colocar Caim como protagonista deve ser considerado uma infâmia muito grande por parte dos cristãos, afinal, ele encarna, junto com Judas Iscariotes, dois exemplos das piores condutas que podem haver segundo a religião cristã.

Longe de querer estabelecer aqui até onde os atos de Judas e Caim são condenáveis ou nem tanto, cabe reconhecer que Saramago estava querendo tirar o leitor da suposta “zona de conforto” – a crença estabelecida que permeia, em certa medida, o próprio “senso comum” – e convidá-lo a repensar a história cristã sob o ponto de vista de alguém cujas afinidades com Deus não eram as mesmas que aquelas mantidas pelos cronistas do Antigo Testamento.

Como um sujeito muito cético quando o assunto era religião, Saramago buscou interpretar o texto bíblico a partir de suas convicções, colocando muita mordacidade em sua forma de construir a narrativa e procurar algum sentido nas aventuras pelas quais passa Caim. A forma como ele aborda os eventos de Sodoma e Gomorra, quando Deus elimina uma série de pecadores, mas que acaba, por conseguinte, eliminando também crianças supostamente puras de coração, é um exemplo disso. Caim não consegue se desvencilhar dessas memórias até o fim, usando-as frequentemente como argumento para questionar a suposta suprema bondade e misericórdia de Deus.

Outro exemplo é a exigência divina de que Abrãao leve seu filho Isaac ao topo de um monte e o ofereça em sacrifício a Ele. Saramago execra a atitude de Abrãao, que realmente intentava cumprir os desígnios divinos, e coloca Caim como aquele que segurou a mão de Abrãao quando esse estava a ponto de desferir o golpe final na garganta de Isaac.

O furor dos católicos, ainda mais em Portugal, cuja tradição católica remonta a tempos antiquíssimos, não foi pouco, mas Saramago suportou as críticas com serenidade e com mordacidade semelhante àquela presente no livro. Perscrutando nas fissuras da história bíblica os elementos que nela faziam pouco sentido, Saramago subverte boa parte da pretensa moral do Antigo Testamento faz dele surgir, antes de um louvor a Deus, uma análise sobre o homem, em toda a sua graça, falibilidade, acertos e erros, que são sua condição existencial. A qual estamos todos sujeitos, cristãos ou não.