Leia a primeira parte da resenha de The Pale King aqui.

Ao mesmo tempo, reconhece avisos jurídicos que tomamos por nada, o bom e velho “qualquer semelhança à realidade é pura coincidência”, e imagina se com isso tudo ainda vale de alguma coisa.

É um jogo metaficcional (e esse próprio capítulo cita isso como besteira autocongratulatória que o autor supostamente odeia, se afundando ainda mais no paradoxo do que se pode tocar), algo que poderia com extrema facilidade amargar ao gosto, mas que permanece engraçado e até mesmo comovente, sempre introduzido na casual apresentação “Autor aqui”, com aquele charme torto e quase interiorano que sempre apaga possível ceticismo, retornando David Foster Wallace do monstro-literário para alguém de grande afeto, sem os dois serem mutuamente exclusivos.

Já em outros momentos, a história vira para fora, longe de se explicar, despindo recapitulação ou conexões fáceis, criando barreiras intransponíveis. Aqueles cheiros de tramas, ideias que frustram e animam em igual medida, ameaçando convergir, mas sempre correndo em infinito paralelo. É, claro, impossível prever o The Pale King da mente de Wallace. A morte do autor deixa um grande buraco no centro da história, seja nas coisas que vemos, seja nas coisas que não.

Em certos contos aqui, a doença dele ecoa de maneira maravilhosa em cada frase, quase que em súplica, como no excepcional capítulo (aqui intitulado “seção”, em homenagem aos jargões da Receita) onde um auditor contempla suicídio devido à natureza de seu trabalho. E ao lado, outros ecos são quase tão perturbadores quanto o texto em si: um menino tem ataques de suor e é extremamente, dolorosamente, intelectualmente consciente da percepção das pessoas quando ele transpira e da vida em terror que isso o confere. Outro personagem sofre um colapso nervoso ao planejar uma simples tarefa, ancorado pelo próprio cérebro em ciência e ausência emocional.

Mas ver o livro como uma carta suicida é reducionista. Ele vai bem mais longe que isso, algumas de suas melhores seções sendo sobre o autor em outras peles, em algumas das mais sinceras explicações sobre o que é ser um escritor. Como no supernatural Shane Drinion e na narcisista Meredith Rand tendo um tête-à-tête de mais de cinquenta páginas sobre angústia adolescente. Ou em como o Irrelevante Chris Fogle nunca, nunca entende o seu apelido. Ou então no menino chamado Leonard Stecyk, que é a mais caridosa e egoísta pessoa do mundo, ou em um bebê estranho e ruivo que dá nome e domina todas as coisas, o melhor dos burocratas.

São momentos externos, imaginários, de tão fácil graça quanto qualquer outra ficção por aí pode ser, e tudo a serviço de uma trama inacabada que parece meio que um daqueles filmes de roubo, meio que um thriller político, todo espalhado com doses do oculto, do macabro e do mais comum mistério, que se esconde na papelada que ninguém quer se dar ao trabalho de ler, em vida que é real quando tenta desesperadamente não ser.

Não se engane, então. Nada amolou sua faca e Wallace refletiu isso em pessoas fóbicas, sucedidas, quebradas, reunidas sem e com motivo em um cada vez mais fascinante e repulsivo prédio governamental, como qualquer outro prédio governamental… Seguindo o melhor da prosa de Wallace, The Pale King é charmoso e lírico e lindo e de todo envolvente. Também é um pálido do que ele vivia, do que o livro poderia ser caso a dor o tivesse superado e ele tivesse tido a chance de terminá-lo da maneira como planejava.

Ou talvez, só talvez, esteja melhor assim. Uma grande, bela lacuna, em um livro sobre as grandes, belas lacunas da vida. E tal qual com a vida, Wallace defende por unhas e dentes a beleza disto: o irrepreensível espaço que espera preencher todas as coisas, lindo terror em números, informações, decepções, manipulações, sensos e lógica, homem e máquina, tédio e foco, fazendo pequena amostra do rei pálido que reina sobre nós, com um inesquecível e invariavelmente minúsculo romance – escrito até não poder mais, por um fantástico autor que tanto podia e que, em tão pouco tempo e com tanto poder, fez.

Sobre o autor: Quando não está lendo e dando pitaco sobre o que não sabe, Mateus Borges (@mateusb) assiste séries e escreve sobre elas para o Série Maníacos. Acha um absurdo que Lorne Michaels não seja reconhecido como um gênio moderno, e seu coração cai forte no chão sempre que alguém diz que TV não é cultura.