As histórias de Saramago são bem tresloucadas. Fico imaginando como elas surgiram em sua cabeça e como elas foram ponderadas e cotejadas até virem a se encarnar naquela prosa rebuscada e totalmente idiossincrática do escritor português. Deve ser um processo no mínimo interessante.

Não sei por quê, mas quando fico pensando sobre esse processo diante das obras dele, parece para mim que suas reflexões surgiram no andar da carruagem e não vice-versa. É óbvio que se trata de um processo dialético, em que os questionamentos que dão alma à história se constituem em diálogo constante com a trama e a narrativa que lhe emprestam corpo, mas a julgar pela aparente naturalidade com que as histórias de Saramago aparecem e tomam caminhos inusitados, parece quase que as reflexões foram encontradas ao longo da narrativa, e não o contrário.

Não quero com isso supor que Saramago não refletisse sobre os questionamentos de suas obras, nem quero que minha hipótese supracitada seja tomada como absoluta. Quero, sim, chamar a atenção para o fato de que a urdidura filosófica e reflexiva das obras do escritor português estão tão entremeadas na sua construção narrativa, que falar de uma é tocar na outra. Os pontos cosidos na trama marcam um traçado de questionamentos poderoso mas subjacente ou muito sutil. Não há numerosos momentos em que a trama é suspensa para um ou dois parágrafos de “pura” reflexão, justamente porque esses momentos estão diluídos na própria trama.

Tendo sido marcados alguns dos pontos interpretativos que essa resenha buscará salientar, passemos então à análise do romance A jangada de pedra, publicado em 1986.

A história começa com a apresentação de um evento incomum: fissuras começam a aparecer em vários pontos da fronteira entre Espanha e França. Rios têm seus leitos aprofundados em abismos e desfiladeiros cuja profundidade só faz aumentar apesar dos esforços humanos para deter o tal fenômeno. A extensão e a localização dessas fissuras indica claramente que a Península Ibérica está se desprendendo do resto do continente europeu: a jangada de pedra está prestes a começar sua jornada.

Concomitantemente, outros eventos incomuns se passam e vão apresentando os personagens que seguiremos ao longo do romance. Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho e o risco se mostra impossível de apagar. Joaquim Sassa executou uma tarefa que seria considerada impossível para alguém com seu tipo físico: atirou uma pedra consideravelmente grande a uma consideravelmente longa distância. José Anaiço passou a ser repentinamente seguido por uma revoada de estorninhos aonde quer que fosse. Pedro Orce começa a sentir vibrações no solo onde pisava, constantemente. Maria Guavaira, por sua vez, encontrou uma meia de lã que não acaba de se desfazer por mais que se puxe o fio de sua meada.

Todos os personagens, pela natureza incomum dos eventos pelos quais passaram, acreditam ter uma certa responsabilidade – ou ao menos relação – com o que acontecia com a Península Ibérica. Em parte por conta disso é que passam a vagar conjuntamente pela extensão da jangada de pedra rumo ao despenhadeiro final, a proa da “embarcação”, como que a buscar alguma possível explicação para tão inusitado evento.

A busca dos personagens tem algo de ontológico. A resolução de se lançar numa tal jornada é tomada como que de comum acordo, animada por uma ânsia tácita que os põe a caminho alegremente. Os debates que se dão, muitas vezes motivados pelos seus estranhos feitos ou pelos detalhes da vida pregressa, vão ajudando a desenhar o traçado da empreitada e aproximar os personagens, que se tornam adeptos de um misto de busca e flâneur, enquanto boa parte dos ibéricos se preocupa com a situação da península.

Embora os personagens de Saramago sempre tenham um apelo humano pela simplicidade de seu pensar e pela sinceridade de seus atos e sentimentos, creio que as especulações de Saramago sobre as repercussões que a separação ibérica teria sobre a opinião pública e as políticas nacionais e internacionais são a melhor parte do livro. São nesses momentos que o sentido de sua literatura sobe alto na sensibilidade, na sátira e no potencial analítico do homem e da condição humana.

Pensar o que aconteceria se a península Ibérica de fato se separasse da Europa sem mais nem menos parece um exercício tão fadado a sua especificidade quanto a sua improbabilidade autoevidente. Mas é justamente pela possibilidade literária de romper com os padrões reais e, diante disso, olhar para a realidade “deixada para trás” que vários dos livros de Saramago se tornaram tão interessantes sobre o mundo contemporâneo (vide Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte).

O movimento da península para Oeste a separa da Europa, o que leva os políticos a imaginarem como se dará a nova configuração governamental diante da situação inusitada. Ao mesmo tempo, a logística do transporte aéreo e marítimo precisa ser rearranjada. Geólogos, sismólogos, geógrafos e demais cientistas se preocupam em compreender como o fenômeno da separação influenciará no comportamento geológico da jangada de pedra, como a influência astral das marés se dará, como a velocidade de movimentação irá afetar os fenômenos naturais e assim por diante. Além disso, a preocupação com o iminente choque com o continente americano entra na pauta tanto dos cientistas naturais quanto dos políticos, afinal trata-se de uma questão de interesse internacional.

Diplomatas procuram entabular conversações. Lideranças se erguem para representar diferentes contingentes de pessoas e interesses. Cientistas políticos procuram pesar as implicações dessa movimentação para a geopolítica mundial. Sociólogos querem entender o impacto dessas mudanças nas relações sociais. Economistas anseiam preparar-se para as transformações anunciadas. Saramago faz questão de destacar esses “pequenos” impactos para desnudar o caráter de suas matrizes reais, como quando os Estados Unidos se preocupam com a possibilidade de Portugal e Espanha alterarem a frágil geopolítica dos dois blocos ideológicos na Guerra Fria.

Nessa complexa narrativa está incrustada uma vigorosa interpretação dos anos 80, quando a participação de Portugal e Espanha nas negociações que viriam a culminar com o famoso Tratado de Maastritch – que deu origem à União Europeia em 1992 – não era tão favorável quanto a de outras potências europeias – ainda que os dois países tenham sido incluídos no Ato Único Europeu assinado em 1986. Tendo posições parecidas entre si dentro da política europeia e ocupando o lugar que ocupavam dentro dos quadros econômicos visados pela implantação da área de livre comércio e circulação, foi assim que Saramago pôs em relevo sua leitura dos eventos em curso.

Além disso, os movimentos da jangada de pedra despertam preocupações por estarem sendo executados dentro das complexas e potencialmente explosivas zonas de influência dos blocos soviético e norte-americano. Ainda que a Guerra Fria estivesse em retrocesso diante dos problemas enfrentados pela URSS, os desdobramentos diplomáticos e ideológicos do movimento eram parte das ponderações dos burocratas e autoridades do livro, sinal de sua mínima relevância.

Ao lado de tudo isso – ou através de tudo isso –, Saramago propõe ainda uma provocação bastante evidente no título da obra, afinal uma jangada de pedra certamente não poder servir ao seu propósito mais básico, que é flutuar para possibilitar a navegação. Ou seja, se a situação da península Ibérica continuasse no mesmo ritmo e moldes, é pouco provável que ela fosse ser capaz de flutuar, muito menos de navegar e chegar a algum suposto destino.

Nos poucos elementos aqui elencados e analisados foi possível identificar alguns dos indícios do talento literário do escritor português. E, tanto quanto isso, foi possível observar como a ficção lida com problemas humanos, postos pelos solavancos da caminhada social e histórica dos homens, problemas que ensejam a literatura, embora não a determinem, fazendo com que das frinchas da ficção surjam nesgas de verdade valiosíssimas.