Não foram poucas as bibliografias que apontaram O emblema vermelho da coragem, do escritor Stephen Crane, como um dos livros basilares da literatura norte-americana. Várias delas ressaltam que o livro foi o primeiro a tratar da guerra – a célebre Guerra Civil Americana (1861-1865) – de uma forma realista, sem idealismos exacerbados, ânimos por demais parciais ou de uma forma romântica. De fato é um livro pungente sobre um dos episódios mais controversos da história do país, e cuja memória é até hoje motivo de disputa, afinal foi um evento sem paralelos ao longo de toda a história norte-americana, pelo menos não da envergadura que foi o embate entre norte e sul.

Poucos são os personagens nomeados no livro. Há alguns soldados cujos nomes são citados aqui e ali, além do protagonista, Henry Fleming; mas em sua maioria o “anonimato” fomentado pelo espírito de corpo militar domina a cena. O protagonista é, em alguma medida, uma forma um tanto patética de retratar o idealismo heroico que movia alguns dos soldados que se alistavam voluntariamente para lutar contra os separatistas do Sul. Idealismo esse que era violentamente obliterado pelo avanço sem remorsos dos conflitos e do cotidiano da guerra.

O conflito é mais caracterizado por uma confusão do que propriamente certezas, nada de grandioso que se anuncia acerca da guerra parece permanecer em pé no campo de batalha: generais desnorteados, um sentimento de tensão constante que embota quaisquer esperanças, um senso enlouquecedor de auto-preservação que se choca o tempo todo com a fraternidade entre os soldados etc. Tudo parece estar conspirando contra as quimeras que alimentara o jovem Fleming, nada do que sua ideia de guerra lhe dizia parecia fazer sentido naquele caos de sangue, lama, suor e tiros.

No início, acompanhando os pensamentos e receios de Fleming, vemos que ele teme não ter coragem de avançar contra o inimigo quando a hora chegar. Com o passar do tempo, tendo vencido esse receio e tendo marchado incontinenti em direção ao inimigo, ele se dá conta de que seu ato nada significou no âmbito geral da guerra, e que se era isso bravura ou não, ninguém deu a ele valor.

Fleming custa a acreditar, mas em suas andanças ao longo do livro – e são várias, afinal ele está física e espiritualmente desnorteado – o impelem a aceitar que ele não é nada mais que uma engrenagem na gigantesca e inumana máquina da guerra. A crueza de suas experiências parece atestar que se trata mesmo de um dente de uma engrenagem, tamanha sua insignificância diante da magnitude belicosa dos exércitos em choque.

Uma das imagens mais significativas da obra se dá quando Fleming pega seu rifle e passa a atirar na bruma que se estende a sua frente e que, supostamente, esconde os exércitos inimigos: não se sabe em que se atira, não se sabe ao certo com quem ou porque se luta. Fleming chega a argumentar com os oficiais superiores, dizendo-lhes que devem honrar a bravura do exército yankee – os soldados do Norte – e marchar contra os Johnny Rebs – alcunha pelo qual eram conhecidos os soldados do Sul -, mas tem como resposta a pachorra do oficial. Ele lhe ordena que abandone seus sonhos a respeito do combate, da bravura, da honradez e outros dos valores que comumente ilustram as visões românticas da guerra; esse não é o lugar e nem é essa a hora para tais sentimentos.

O emblema vermelho da coragem de que fala o título do livro é concedido a Fleming quando ele é acertado por um golpe de coronha e passa a ostentar uma cicatriz, prova de sua suposta bravura, mas que se mostra um monumento vazio, irrelevante diante das urgências da realidade nua e crua da guerra.

Pouco a pouco Crane vai destruindo cada uma das expectativas de Fleming, de modo que se desenhe por detrás de sua trajetória individual uma constatação que se mostra coletiva: não há nada de heroico, romântico ou idealista na guerra.

Assim desnuda-se a grandeza de O emblema vermelho da coragem: sua capacidade de mostrar o bestialidade da guerra (Crane usa várias vezes termos como “besta”, “serpente”, “criatura” para designar as tropas em choque) e como o conflito cuja memória heroica está tão em evidência nada tem de heroísmo, altruísmo ou bravura nem em seu desenrolar nem na sua “natureza”.