Um homem com uma câmera preenche a tela. Olhos colocados no viewfinder – câmera de vídeo – indicam o uso do aparelho como uma arma, uma potente ironia que remonta à máxima godardiana: “para ver é preciso filmar”. A tensão sonora e o super-close anunciam sem cerimônias: “This is a new cinema…”

Eis que tudo se fez novo… Não estamos diante de apenas mais um webdocumentário, mas do desafio a um certo cinema que entra intacto em um século que não mais lhe pertence. Se o cinema é o filho artístico da modernidade industrial, talvez hoje ele não passe de um engodo. Está morto, mas o seu cadáver permanece insepulto; é um fantasma tornado espetáculo que segue a maravilhar (assombrar!) a produção audiovisual em pleno século XXI. A mera transposição das velhas formas de produção às novas mídias digitais é somente a resposta mais fácil.

A guerra está declarada: camerawar! “We (should) own our image(s)”, exclama Lech Kowalski, guerrilheiro à frente da experiência. A internet se apresenta como um novo espaço, não-físico e atemporal, onde finalmente foi dado aos indivíduos o controle dos mecanismos de distribuição. A alquimia dessa política da visão se escancara às portas do novo século dominado pelas imagens: todos podem filmar e, portanto, ver. Mas o que, de fato, é preciso ver?

Crise financeira, eleições presidenciais, vida para o consumo, crise ambiental, desemprego… A camerawar.tv nasceu em um momento de crise, filha de uma promíscua relação entre o cinema direto e vídeo caseiro. O resultado é uma coleção de 79 vídeos que têm, acima de tudo, a função de subverter nossa relação com o universo das imagens.

Anti-televisão: os episódios, lançados semanalmente pelo período de um ano, não têm o objetivo de falsificar explicações vazias para as questões que abrem o novo século. Pelo contrário, o que se busca são as opiniões dos não-especialistas, as dúvidas, as observações casuais. Diante da crise, há as pessoas.

Há três aspectos fundamentais que camerawar.tv subverte em relação à linguagem televisiva e à documental clássica, que decorrem da liberdade do uso da web como meio de difusão das imagens:

Liberdade de narrativa: os episódios são realizados em pequenos blocos livres e autônomos, como os capítulos do “Jogo de amarelinha” de Cortázar, o que garante a independência no encadeamento de ideias. Uma coleção de fragmentos, libertado da continuidade narrativa obrigatória imposta pelo rolo de película ou da fita magnética, de forma que não haja necessidade de “gancho” ou estrutura de virada e clímax para que se sustente a continuidade dos vídeos. É a ética do encontro amistoso imposta em detrimento da narrativa arquetípica dos heróis. Somos convidados a observar os fragmentos da vida que passam despercebidos pela memória consciente, uma ode aos tempos mortos.

Liberdade de duração: se cada ideia, conversa e pensamento de camerawar.tv tem determinada temporalidade é porque a imagem exigiu isso do realizador. Dado ao cineasta o direito de distribuição, fica também a seu critério os limites de duração de cada obra. A obra audiovisual na internet inverte completamente a relação entre tempo e narrativa, ao permitir que o discurso determine o tempo de apreciação.

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Liberdade de forma: não apenas a duração, mas as estratégias de discurso são passíveis de variação em meio aos diversos fragmentos. Não é pelo fato de se seguir, em média, o modelo do Cinéma Vérité que se impede a metalinguagem ou a vídeo-poesia. Não é o respeito ao debate e à entrevista que impedem a trilha de silenciar bocas em movimento. Na obra fragmentada, a forma é apenas mais uma ferramenta narrativa. Floreio de estilo.

É no vídeo intitulado “The Eye” [33] que encontramos a chave que permite começar a decifrar aquilo proposto em camerawar.tv como experiência de cinema. Vemos Kowalski sem câmera – o realizador tornado objeto – conversando com seu assistente, tentando definir uma unidade de captação que gere as imagens desejadas e as regras para uma linguagem única. Sobrepõe-se as imagens que estão sendo criticadas, insistentemente, ao discurso: imagens do próprio cineasta filmando e, em seguida, as imagens daqueles que filmou. O discurso sobre a linguagem cessa diante das imagens sendo produzidas. A conclusão final vem em discurso: “Então, apenas continue fazendo o que está fazendo”. Kowalski se coloca corajosamente diante das telas numa crítica à dubiedade de sua postura: o que exige de seu assistente é que, ao mesmo tempo, filme com liberdade – pois seu olhar seria capaz de complementar aquilo que, em decorrência da prática de Kowalski, já se tornou vícios narrativos – e filme aquilo que se exige.

Esta dubiedade narrativa estará presente em grande parte dos vídeos de camerawar.tv – talvez por esta razão, este mesmo close-up de Kowalski filmando seja a primeira imagem com a qual nos deparamos ao acessar camerawar.tv. No vídeo intitulado “Republican” [16] essa dualidade leva a uma narrativa extremamente interessante, principalmente quando, num diálogo despretensioso com um eleitor do partido republicano, é evidenciado gradativamente um conjunto de características políticas cuja irracionalidade eleitoral é gritante: o voto baseado na perícia com armas, preconceito étnico, etc. Contudo, no momento em que se percebe que o absurdo destas respostas fariam o homem que anda com um cadáver de veado na caçamba da picape parecer irracional e reprovável, Kowalski passa a questionar seu próprio papel enquanto detentor do discurso. “Eu não queria montar isso de uma forma em que você parecesse um ‘caçador mal’ que mata animais e é contra Obama por maus motivos… Não quero que isso pareça uma peça de propaganda política”. É neste momento de transição que a questão do documentário político, aos moldes de Comolli, abre espaço à crítica da mídia e à batalha das telas. A autocrítica enquanto realizador e detentor do discurso põe em cheque o próprio ato de se gerar conteúdo, seja na TV ou no cinema documentário.

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De riqueza documental e narrativa impressionante, camerawar.tv é uma ousada ofensiva contra as mídias convencionais e um chamado a um novo cinema. Poderíamos listar diversos procedimentos de ruptura presente nos vídeos, como o antidiscurso de “Corporate reality” [41], a evidência da tela e desmistificação da imagem em “Election” [8], a duração e a expectativa em “President Obama” [38], etc. Mas pouco nos adiantaria se seguíssemos analisando seus métodos e procedimentos. Melhor seria desviar a atenção da batalha: Kowalski realmente acredita que a internet, ao libertar os produtores das prisões da distribuição, da narrativa e da duração, abrirá espaço a uma nova era da produção de imagens?

A questão poderia ser respondida por um fragmento do interessantíssimo debate registrado no vídeo intitulado “Television” [19]: “O fato de haver mais canetas não faz com que haja mais escritores”. A crise da imagem é um terreno árido onde apenas poucas ervas daninhas podem germinar como uma nova proposta audiovisual. Tempo e narrativa, imagem e discurso. Ao “novo cinema” ainda só se podem seguir as reticências…