Isto não é um filme [In film nist | Irã | 2011 ]

Um filme sobre um filme que não foi. Nunca será. Jafar Panahi foi proibido pelas autoridades iranianas de filmar por um período de vinte anos. Os motivos não são claros; o sistema jurídico também não. Enclausurado em seu apartamento, Panahi foi condenado a uma entediante rotina de afazeres cotidianos sem sentido. A câmera, apoiada estática sobre móveis, filma o tempo que passa com desinteresse. Uma câmera inerte e sem propósito que nos remete às palavras de Almodóvar, que pregam que “os filmes devem ser terminados, mesmo que seja às cegas”. Panahi não discorda. Sua dúvida é outra: como terminá-los quando fomos tornados mudos? Frente à agonia da condenação à prisão domiciliar e censura, o que pode fazer um cineasta?

O plano parece simples: não tendo sido proibido de atuar, Panahi convida o documentarista Mojtaba Mirtahmasb para operar sua câmera enquanto atua diante dela uma espécie de leitura dramática de seu último roteiro. Não demora muito para a questão se tornar sobre si mesma. Tendo explicado seu plano na mesa da cozinha, Panahi, ainda bastante inseguro, toma atitude: “Ótimo, então vamos para outro lado… Muito bem. Corte”. Mas a câmera não corta, ela não pode. Neste momento Panahi percebe, talvez pela primeira vez, que perdeu toda sua potência de diretor. Sua voz não mais comanda as ações da câmera, pois fora proibido de fazê-lo.

“–Você não está dirigindo, isto é uma ofensa…

–Então não sou mais o diretor?”

Profanado o réalisateur, rompe-se também o véu que cobria os rostos de todos nós, os espectadores. Estamos diante de um projeto de documentário sobre uma ficção irrealizada, atuado por um diretor que perdeu o controle sobre o processo de realização. Menos projeto que auto-engano, portanto. Um eterno vir-a-ser.

Panahi inicia sua empreitada em ler dramaticamente seu roteiro, adaptando o espaço de sua sala de estar como cenário improvisado. Mesmo frente a tão precária produção, surpreende o fato de que, aos poucos, a narrativa nos interessa. O ato de se contar histórias sobrepõe a forma ou a qualidade de se contá-la. Será este difícil diálogo entre a potência narrativa das imagens cinematográficas e a necessidade da narrativa por si (ato de contar histórias), que carregará o filme daí em diante.

Difícil identificar quais os limites narrativos entre conteúdo da história e a potência imagética pura e simples do documentário. Ao vermos Panahi “dramatizar” seu roteiro ao mesmo tempo que somos cativados pela história narrada, não podemos deixar de perceber seus trejeitos, sua insistência em explicar onde colocará a câmera e sua incapacidade em respeitar os limites das paredes imaginárias que ele próprio acabara de criar. Não sabemos se estamos cativados pela história narrada ou por quem a conta. E Panahi não demora muito para interromper seu projeto num choque de realidade: “Se desse pra contar um filme, não teria porquê filmá-lo”!

O título deste documentário toma aqui um sentido bastante mais potente que a ingênua interpretação da ironia – ou pior, verdade – da afirmação “isto não é um filme”: é um grito amargurado frente àquilo que não sacia.

O que falta para Panahi? O exemplo vem de seus filmes antigos: imprevisibilidade da atuação improvisada, simbolismo visual, linguagem cinematográfica. Toda narrativa tem potência, mas nenhuma potência é a mesma da narrativa do cinema. Olhando o passado, apenas vemos potencialidades de um cinema que jamais poderá novamente ser.

Um dos momentos mais poderosos do filme é quando Mojtaba Mirtahmasb encontra Panahi parado à janela de sua casa, filmando uma queima de fogos – das comemorações pagãs, conhecida como quarta-feira dos fogos, que ao serem comemoradas são também um ato de enfrentamento ao regime fundamentalista iraniano – e lhe questiona a atitude. “Fiquei entediado,” responde Panahi, “estou gravando. Não podemos fazer nosso filme, então, ao menos, quero ver se posso fazer alguma coisa com o telefone celular. […] Mas qual o proveito disso? A qualidade é muito baixa”. Mirtahmasb responde sabiamente: “Escute, Jafar, creio que o importante é o que está documentado”. Ambas as câmeras ficam então estáticas, registrando-se mutuamente. Mirtahmasb realiza um magnífico diálogo de metalinguagem, questionando, meio desacreditado, se tudo aquilo que gravaram naquele dia poderia de alguma forma se tornar um filme. Mas isso pouco importa, as câmeras devem permanecer ligadas. Entra em plano a imagem de baixíssima qualidade da câmera de Panahi. Pela primeira vez, o diretor é restituído do controle da câmera. Poucas as vezes o ato de filmar foi tão político quanto nestes minutos em que ambos cineastas se filmam mutuamente. Ali, parados, estes dois realizadores meio desconfortáveis e sem objetivo escancaram, ao mesmo tempo que combatem de maneira quase ingênua, todo o peso do cárcere e do cerceamento à liberdade de expressão. Uma luta racional contra a irracionalidade de um sistema.

Não, Isto não é um filme não é apenas um documentário metalinguístico, mas sim um tratado político que escancara o exterior a partir do interior. Uma transmutação alquímica pela via da imagem. Ao trancar-nos em um apartamento, reflete todo o Irã. Ao falar-nos sobre a dor da castração de filmar, escancara toda a potência da imagem cinematográfica.