Talvez a principal contribuição do velho Romero à cultura pop sejam os adoráveis mortos que um dia resolvem levantar e sair atrás da gente. Na concepção de Romero, os zumbis são um reflexo da humanidade. O zumbi é o ser humano em estado puro, sem as amarras e limitações impostas pela vida em sociedade. Com essa definição, Romero imbuiu em seus filmes uma pesada crítica social contemporânea, não só em relação ao comportamento dos zumbis (como em Zumbi: O Despertar dos Mortos e em Terra dos Mortos), mas também em relação à situação e ao comportamento de todos os envolvidos no holocausto zumbi.

A Noite dos Mortos-vivos, produção de 1968, tem por base a luta pela sobrevivência. Trata-se de um grupo de pessoas tentando sobreviver a uma situação extrema com os parcos recursos disponíveis. Armas com pouca munição, carros sem combustível, janelas sem grades. Paralelamente a isso, Romero buscou retratar a situação social americana daquele ano. Isso se percebe em diversos aspectos do filme, como no polêmico personagem Duane Jones (que, reza a lenda, foi contratado pelo simples fato de ser negro), que, além de ser a pessoa mais lúcida na casa-refúgio, ainda consegue impor a sua liderança de forma positiva, além de ser o único sobrevivente do cerco dos mortos à casa-refúgio, para, no final do filme, ser morto por um caipira de forma absolutamente estúpida e desnecessária. Com Duane Jones, Romero buscou retratar Martin Luther King Jr. e Malcolm X, líderes negros de destaque nos EUA e que foram assassinados, respectivamente, em 1968 e 1965.

O descrédito que recaía sobre o governo americano e a defesa nacional na época também é representado no filme, já que as autoridades oficiais se mostram praticamente incapazes de conter o holocausto zumbi que se inicia, tanto que o cerco à casa-refúgio só é quebrado com a ajuda de fazendeiros e outras pessoas da região. É interessante notar também a quebra de paradigma no que tange à ameaça do filme. Não são mutantes. Não são alienígenas. Somos nós.

Já em Zumbi: O Despertar dos Mortos, o alvo da crítica de George Romero passou a ser o comportamento consumista e preconceituoso do cidadão americano. O filme se inicia com uma invasão da SWAT a um edifício habitado por imigrantes hispânicos e afro-caribenhos que desrespeitaram a lei marcial imposta de entregar ao governo americano os mortos e feridos, visando reduzir e eliminar a praga dos mortos-vivos. A crítica à postura racista e segregadora americana em relação aos imigrantes e negros fica clara não no sentido óbvio dos zumbis do começo do filme serem negros e hispânicos, mas sim no sentido de que esses grupos se negam a cumprir as leis a eles impostas. Isso só se evidencia em um diálogo politicamente incorretíssimo, logo após a missão no prédio, em que Peter e Francine falam sobre quem eles perderam na epidemia (tradução minha):

Francine: E você, quem você perdeu?

Peter: Uns manos.

Francine: Manos de irmãos ou só… manos?

Peter: Os dois.

Com a chegada ao shopping center, o alvo da crítica muda, passando para os hábitos consumistas norte-americanos que transcendem a morte. Os zumbis se dirigem instintivamente ao shopping e são vistos, inclusive, fazendo compras, empurrando carrinhos transbordando mercadorias, roupas e comidas. Com isso, Romero quis passar a idéia do nosso impulso consumista de nos empanturrarmos de coisas que não precisamos, já que zumbis não precisam de comida, roupas, etc., pois estão mortos. Assim como nós, que empanturramos nossos carrinhos de coisas que não precisamos.

Em Dia dos Mortos, o apocalipse já se consumou. Os humanos vivem em fortalezas militares. Na fortaleza retratada no filme, um zumbi é capturado por um cientista e é usado como cobaia não para uma eventual cura (não há o que curar, Bub está morto), mas para uma re-socialização. Como disse antes, a definição de Romero para os zumbis nada mais é que o ser humano sem as amarras da sociedade. Neste terceiro filme da saga, a sociedade não existe mais. O homem não tem mais um parâmetro moral a seguir. Os habitantes da fortaleza, liderados pelo paranóico capitão Rhodes, vivem no limite da sanidade. Atos de agressividade e assassinatos são costumeiros dentre eles.

Neste filme não prevalecem os motivos de sobrevivência e o equilíbrio entre supérfulos e indispensáveis, mas sim o motivo de que o ser humano jamais enfrentará uma ameaça maior que ele mesmo. O espelho disto é Bub, o zumbi treinado pelo Dr. Logan, que é dócil e leal e, como uma criança, começa a descobrir (ou redescobrir) que o mundo ao seu redor é mais que abrir cabeças e comer miolos. Com isso, as diferenças entre os humanos e os zumbis diminuem, sendo que em momentos do filme o zumbi não representa a ameaça, mas sim uma ponta de esperança para o restabelecimento da sanidade naquela fortaleza.

Em Terra dos Mortos o mundo está totalmente desolado. Os zumbis disputam com os homens o domínio da Terra em pé de igualdade. Os mortos se organizaram, seguem um líder, possuem ambições e têm um mínimo de racionalidade, a ponto de estabelecerem uma trégua com os humanos, já que ambos não possuem nada e precisam reconstruir as suas sociedades a partir de ruínas. Big Daddy, o líder dos zumbis, foi concebido a partir da evolução intelectual demonstrada por Bub em Dia dos Mortos. Ele é o responsável pelo primeiro degrau na escala evolutiva dos zumbis, onde eles aprendem a se adaptar, aprender e até a se comunicar a partir de grunhidos e gemidos primitivos.

Disparado o pior filme da franquia, Terra dos Mortos aproxima de forma definitiva os humanos dos zumbis. A premissa final do filme é que no fundo, tanto os homens quanto os zumbis são iguais e, como iguais, devemos aprender a conviver.

No recente (e fraquíssimo) Diário dos Mortos, Romero apresenta, de forma bastante duvidosa, eventos que aconteceram paralelamente ao cerco à casa-refúgio da Noite dos Mortos Vivos. Ignorando que o filme original se passa em 1968, Romero apresenta uma sociedade completamente anacrônica em relação à época, com notebooks, celulares 3G, blogs, videocasts, etc. Talvez Romero pretendesse demonstrar que a Noite dos Mortos Vivos seria um evento contemporâneo, desprendido de limitações temporais. Essa demonstração foi alcançada, mas ao custo de comprometer a lógica da franquia inteira.

Críticas à parte, o filme gira em torno de eventos que aconteciam em outros locais na fatídica noite em que os mortos se levantaram e começaram a subjugar os humanos. Filmado em perspectiva subjetiva (mais um herdeiro da Bruxa de Blair), Diário dos Mortos conta a história de um grupo de estudantes de cinema que, enquanto produzia um filme, é atacado pelos zumbis. O filme não chega a ser tão ruim quanto o Terra dos Mortos, mas deixa bastante a desejar, especialmente em relação aos primeiros dois filmes da saga. Entretanto, alguns aspectos são bastante relevantes e, apesar de inverossímeis para as pessoas com um mínimo de bom senso, não me surpreenderiam se efetivamente ocorressem. Nós vivemos uma época em que a informação não pode se dar ao luxo de não ser transmitida. A necessidade de assistirmos/ouvirmos/lermos chega a extremos, como no atual caso do assassinato de Isabela Nardoni, onde a imprensa armou um verdadeiro circo e não nos privou nem do mais ínfimo e particular detalhe da vida dos envolvidos, seja nos noticiários, seja nos YouTubes da vida. A necessidade de sabermos todos os detalhes (especialmente os mais sangrentos) cresce ao ponto da irracionalidade. O popular termo “link para o vídeo ou isso não aconteceu” ganha uma conotação cada vez mais doentia. Em Diário dos Mortos não é diferente. A necessidade de alguns dos membros do grupo de documentar chega a ser doentia, especialmente no ponto em que o personagem Jason prefere filmar a amiga sendo atacada por um zumbi a prestar algum tipo de auxílio. Inclusive o fatídico destino do personagem que, após ser mordido por um zumbi, entrega a câmera a uma amiga e suplica: “Shoot me.” Neste caso particular, o termo shoot me ganha uma ambigüidade interessantíssima, pois tanto pode significar que Jason queria que pusessem um fim ao seu sofrimento e o impedissem de, após morto, levantar-se como zumbi como também pode significar o ápice da loucura da disseminação da informação, no sentido de que seu último pedido era que o filmassem morrer e se reerguer como um zumbi.

Apesar da constante e gradual queda na qualidade dos filmes, a crítica social de Romero em momento algum deixou de ser atual e pertinente. É louvável o interesse do diretor de não só nos presentear com uma peça de entretenimento, mas também nos jogar na cara que o holocausto zumbi está acontecendo, mesmo que os mortos jamais tenham se levantado das tumbas.

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