Até o dia 24, teremos uma “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, e cada conversa abordará dois contos por vez. Confira os posts anteriores:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

Granta: Antes da queda e O que você está fazendo aqui

TÓLIA

Ricardo Lísias

Ricardo Lísias nasceu em 1975, em São Paulo. É autor de Anna O. e outras novelas (Globo), finalista do prêmio Jabuti de 2008, Cobertor de estrelas (Rocco), traduzido para o espanhol e o galego, Duas praças (Globo), terceiro colocado do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2006, e O livro dos mandarins (Alfaguara), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010, atualmente sendo traduzido para o italiano. Em 2012, publicou o romance O céus dos suicidas (Alfaguara). Seus textos já foram publicados também na revista Piauí e nas edições 2 e 6 de Granta em português.

Gigio: “Tólia” é um dos poucos contos dessa Granta que se aproxima do fantástico. A história inclui grupos místicos, Mestres que devem se reunir pela harmonia com a Natureza e um urso iluminado (o Tólia do título). Se acreditamos no narrador (e sempre cabe desconfiar), ele fala de um futuro próximo, não determinado com exatidão, mas alguns anos à frente. E esse narrador seria o próprio Lísias, a considerar pelas referências a sua própria biografia. Mais que isso, seria um futuro alternativo de Lísias: em vez de escrever O céu dos suicidas, seu último romance, ele teria abandonado a literatura para se dedicar ao xadrez, para depois ir terminar no tal grupo do Olho Interno.

Essa aura fantástica a princípio é fascinante. Existe nos primeiros parágrafos esse clima de mistério, de algo contado à noite, em volta da fogueira, de algo que nos está sendo revelado e que promete muitas surpresas. Para mim, uma das melhores aberturas da coletânea. Mas, para ir direto ao ponto, acabei me decepcionando com o desenvolvimento da história. A conversão do Lísias ao Olho Interno, especialmente, acontece de forma tão simples que a magia meio que se desfaz.

Dindii: Aiai, essa abertura é bem maravilhosa mesmo. Gostei bastante do clima de mistério que você citou e também achei que é um dos melhores inícios dos contos da Granta.

A ideia é boa também, como um todo. Primeiro, isso de ler um texto escrito por, em teoria, um narrador que é o próprio autor e imagina um futuro diferente para si. Depois que ele se encontra em uma espécie de retiro espiritual onde não há nenhum tipo de comunicação verbal, gestual ou escrita. Então fica a primeira pergunta, “como é que um narrador que não escreve nem se comunica conta uma historia?” Mas, afinal, o conto é sobre isso: sobre como no meio de tanta ausência há o encontro com a história, tanto a que temos na mão, o conto, quanto do próprio personagem que logo no início diz “Hoje, estou tranquilo. Tenho certeza de que achei o meu dom e estou no meio de gente igual a mim.”

Sobre o desenvolvimento, acho que as coisas não se perdem. Achei o texto bem redondo e me mantive bem presa nele do início ao fim. Eu não achei decepcionante a conversão dele em Olho Interno. Ele busca um mestre do xadrez, Anatoly Karpov, para acalmar seu interior, e acaba seguindo o Mestre Maior Anatoly. Gosto dessa transição entre as duas vidas usando um mesmo nome-chave.

Agora, uma coisa que eu não poderia ignorar é uma parte que o Lísias diz: “Na literatura, minha grande frustração foi não ter conseguido escrever um romance à altura dos grandes clássicos.” Tudo bem que é ficção e tal, mas que sensação engraçada ler isso no meio de um texto de um autor selecionado pela Granta: ter sido selecionado não transforma nenhuma obra em um clássico instantâneo, mas já é um belo passo pra que ela seja bastante lida, discutida, analisada por aí, né? Afinal, a ideia da seleção é bem essa, como disse o Roberto Feith lá na Flip: “a coletânea é vibrante, diversa, moderna e cumpre o seu principal objetivo: indicar os principais nomes que irão construir a literatura brasileira da próxima década.”

Gigio: Verdade, existe algo de paradoxal nesses dois pontos: um narrador que preza o silêncio, mas conta sua história; um narrador que diz que abdicou da literatura, mas que colabora com um texto da Granta. Mas, claro, são paradoxos apenas aparentes, uma vez que envolvem níveis diferentes, de um lado o escritor como autor, do outro, como protagonista. E, obviamente, nada disso é por acaso. A confusão de contextos causada no leitor traz um efeito muito interessante para o conto (assim como aquele Weltanschauung da Geisler que discutimos ontem).

Pelo que conheço, o Lísias utiliza bastante esse recurso de borrar os limites entre verdade e falsidade (ou invenção), incluindo elementos autobiográficos, por exemplo. Nós, como leitores, queremos não acreditar, mas nosso lado crédulo fica lançando dúvidas inocentes como “será que ele não foi mesmo à Rússia estudar xadrez?”. O que você achou? Curtiu o estilo?

Dindii: Gostei bastante do estilo, sim. Gosto dessa coisa de brincar com o que é real e o que é imaginado. E, claro, usar elementos autobiográficos ajuda bastante nisso. Também o próprio Anatoly Karpov, que de fato é um xadrezista russo, traz mais um elemento de realidade pro texto, mesmo que todo o resto seja bem fantástico – como o urso Tólia que leva fertilidade para as plantações, por exemplo.

Também acho interessante que o personagem-narrador busque sempre por padrões, e que isso é uma coisa que ele acaba fazendo tanto em sua época de escritor quanto depois, ao jogar xadrez. O padrão também se estabelece na busca pelo silêncio: Ele assume que começou a escrever porque assim conseguia entender sua personalidade e isso o acalmava. Depois, o mesmo acontece com o xadrez, e no fim, com o Olho Interno.

Pra mim, foi um dos melhores textos da Granta e me chamou pra conhecer mais a obra do Lísias.

APNEIA

Daniel Galera

Daniel Galera nasceu em 1979, em São Paulo, mas passou a maior parte da vida em Porto Alegre. É um dos criadores da editora Livros do Mal, pela qual publicou o volume de contos Dentes guardados (2011). É autor dos romances Até o dia em que o cão morreu (Livros do Mal, 2003), adaptado para o cinema, Mãos de cavalo (Companhia das Letras, 2006), publicado também na Itália, na França, em Portugal e na Argentina, e Cordilheira (Companhia das Letras, 2008), vencedor do Prêmio Machado de Assis de Romance, da Fundação Biblioteca Nacional. Em conjunto com o desenhista Rafael Coutinho, publicou em 2010 a graphic novel Cachalote. “Apneia” faz parte do romance Barba ensopada de sangue, que será publicado em novembro.

Tuca: E aí, Anica: mesmo sendo um dos textos mais longos da revista, você leu de um fôlego só? Perdeu o fôlego em algum momento? Conseguiu reoxigenar o cérebro depois de lembrar que o resto da história só estará disponível em novembro, na melhor das hipóteses? (Só faço os “trocadalhos do carilho” porque tenho certeza de não ter sido o único a pensar neles).

Anica: Sabe o que é engraçado sobre o trocadilho? Eu ainda estou aqui matutando sobre a escolha do título, “Apneia”. Uma das minhas teorias é de que o pai acredita que o avô tomou uma decisão semelhante à dele (melhor não comentar para não estragar a surpresa, até porque, sim, foi um dos momentos em que perdi o fôlego, realmente me surpreendi com o rumo que aquela conversa entre pai e filho acaba tomando). Um jogo com a capacidade de passar bastante tempo sem respirar do avô, o que de certa forma se contrapõe à incapacidade de continuar respirando/vivendo depois de muito tempo… Mas não sei se estou tomando o rumo certo.

E sobre ser parte de um romance, ouvi muitas reclamações sobre a quantidade de trechos de livros enviados no que supostamente deveria ser uma coletânea de contos, mas no caso deste texto do Galera pelo menos eu não tenho qualquer reclamação sobre isso. “Apneia” pode ser lido como conto, sim, e um conto muito bom. Gostei demais do ritmo do diálogo entre o pai e o filho, o humor colocado na medida certa, sem quebrar a tensão (ri com aquela parte da ruiva, “tarde demais, a gente brigou”). De negativo, acaba ficando só a vontade de ler um livro que ainda não foi publicado.

O que você achou daquelas descrições do começo? O estranhamento do filho ao ver o pai?

Tuca: Sobre a sua teoria, acho-a bem interessante. Tem algo a ver com uma teoria que tenho desenvolvido para conectar todas as obras de Daniel Galera entre si (aliás, você já leu outros livros dele?). Sobre os diálogos, acho-os certeiros: ritmo, humor, tensão. Tive de quebrar uma de minhas regras pessoais, a de não reler os excertos de romance a não ser quando já finalizados e publicados, mas consegui achar a fala da ruiva. Excelente, não? É algo que às vezes faço, quando percebo que alguém está querendo tergiversar numa conversa: faço um resumão de tudo que a pessoa quer saber antes de voltar, sem titubeios, ao assunto principal. Quanto a ser um trecho de romance, meio que já estava preparado para isso por causa da última Granta com 20 dos melhores jovens escritores estadunidenses. “Apneia” pode muito bem ser o começo do romance, do jeito que tensiona a leitura de modo a não permitir que o leitor escape dela. Funciona também como conto por uma das possibilidades do gênero ser a de mostrar um recorte na vida de certos personagens, permitindo ao leitor imaginar começos e fins não explícitos.

Agora, respondendo à sua pergunta, Anica, descrições são uma constante na obra de Galera. Não que todo escritor não as faça, mas hoje em dia há toda uma espécie de consenso de “leitores não curtem descrições, vamos mantê-las no mínimo possível”. O Galera não parece se importar muito com isso; seus livros são recheados delas. Eu não costumo ter problema com descrições: parte porque sei o quanto são necessárias, parte porque elas permitem que o leitor (ainda que inconscientemente) tenha uma pausa para refletir sobre os momentos de ação anteriores e relaxar antes dos próximos. Ah, e parte porque meu estilo de leitura consegue ser particularmente veloz em tais passagens – ao ponto de, às vezes, eu me questionar se estou realmente lendo aqueles trechos. Não sou daqueles que, ao ler um parágrafo descrevendo uma casa, deposita o livro sobre as pernas, fecha os olhos e tenta visualizar cada detalhe descrito.

Num primeiro momento, eu pensei que, pela primeira vez, tais descrições estavam me incomodando. Como se eu estivesse lendo prosa naturalista – acho que o “batatudo” como forma de descrever um nariz me remeteu a Germinal, a Zola e às batatas onipresentes na obra. Reli umas cinco vezes o parágrafo sem conseguir prestar muita atenção ao que lia. Lá pela sétima vez que reli o trecho consegui engatar a leitura e percebi o que realmente estava me impedindo de seguir com ela: o sono acumulado da FLIP. O segredo para a descoberta: antes da sétima tentativa eu consegui cochilar uns 15 minutinhos no ônibus de volta para casa.

Algo que sempre se repete em minhas leituras dos textos deste autor é um sensação aniquiladora de regime de exceção quanto às minhas ideias sobre descrições. Eu não me questiono se estou realmente lendo aqueles trechos: eu tenho certeza disso, pois consigo “ver” os ipês, a parreira, o sítio, a cachorra. Como se estivesse vendo um filme. Não, a comparação não é exata, pois continuo tendo problemas com rostos de personagens literários. O mais correto talvez fosse dizer “como se estivesse lendo uma obra de minha autoria”, só que com certo elemento surpresa: eu desconfio do que vem a seguir, mas nunca posso saber de tudo, pois não fui eu mesmo que escrevi.

Li em algum lugar (lembrei-me: foi nos comentários de um post da Raquel Cozer) que Galera “mostra a que veio, mesmo que continue a cair em um certo preciosismo técnico que incomoda um leitor que quer um pouco mais de emoção”. Sim, é possível que haja quem pense assim do trecho: eu mesmo tenho um amigo que se incomodou bastante com o primeiro capítulo de Mãos de cavalo, o mesmíssimo que achei arfantemente dinâmico. Eu, no entanto, não consigo entender muito o comentário. Emocionei-me bastante e creio que uma abordagem distinta, mais “emocional” e menos contida, não teria surtido tanto efeito comigo.

Anica: Então, eu nunca tinha lido algo dele até ler “Apneia”. Não sei se é um bom representante de tudo que ele já publicou, mas serviu para me deixar curiosa e ir atrás de mais (no fundo meio que deve ser a proposta de revistas como a Granta, não?).

Você comentou sobre o trecho da ruiva, que você usa técnica parecida ao conversar com as pessoas, e acho que muito do que gostei do estilo do Galera ao desenvolver os diálogos é justamente porque ele pareceu bem real. Você consegue sentir os silêncios, a tensão entre pai e filho sem que ele tenha que colocar qualquer frase descrevendo isso. As palavras parecem bem escolhidas, embora eu tenha ficando com um pé atrás quanto ao pai. Não estou dizendo que toda pessoa de mais de 60 anos precise necessariamente ser “antiga” para falar, mas parece que Galera não se decide muito bem entre “o homem simples” e “o homem culto”. O pai fica pulando de um para outro, não só nas marcas de oralidade, mas mesmo nas referências. Eu acabei decidindo depois que o homem culto acabou pesando mais. De qualquer forma, isso me incomodou um pouco em um primeiro momento.

Sobre as descrições, perguntei porque tive exatamente a mesma sensação que você. Se fechar os olhos agora eu consigo lembrar de “Apneia” como se eu tivesse assistido a um filme. Quando comecei a ler pensei “Ah, não, lá vem um Tolkien usando um parágrafo para descrever uma florzinha amarela”, mas não deu nem três frases e pronto, já estava ali observando o pai através dos olhos do filho. Eu acho que muito da questão da descrição tem a ver com um equilíbrio ideal, que o autor consegue atingir aqui. Não é uma gordura, uma passagem que ficaria muito bem fora do texto. Pelo contrário: traz o leitor para a narrativa, o que o permite experimentar um misto de sensações sem nem ao menos estar lá: os cheiros, os sons, o calor. Se todo escritor se utilizasse assim de descrições eu acho que não existiria essa ideia de que leitor não gosta de trechos muito descritivos.

Tuca: Sim, acho que é bem essa a ideia por trás desse tipo de publicação. Além de todo o lance de poder falar no futuro “Viu que o cara ganhou o prêmio Portugal Telecom já tinha aparecido na nossa seleção?”.

Eu também percebi esse movimento entre oralidade e formalidade nos diálogos do pai. Teve um ou outro momento que me incomodou, mas foi mais no sentido “eu não falaria desse jeito” do que no sentido “isso está inverossímil”. Achei muito interessante o background publicitário do pai, o que lhe demandava um conhecimento ímpar da língua (ainda mais quando o personagem ganhou prêmios e mais prêmios por sua atuação nesse mercado) e um bom jogo de cintura com ela. Os momentos de maior formalidade creio que visam representar isso e possuem certa ambiguidade: ainda que aponte como o pai consegue ser desenvolto ao falar daquele jeito, como se fosse seu modo natural de falar, talvez também demonstre que a narrativa exposta não é totalmente espontânea, mas algo que foi muito ensaiado antes de finalmente ser dito, quase que obrigado pelo filho.

Os momentos de maior oralidade, além de trazer algo mais coloquial e humano para a narrativa (o que indicaria como o pai não estaria mais ligando para uma postura a ser seguida, como a de ser exemplo para os outros), também conotam uma vontade de que o filho relaxe um pouco, porque ele mesmo está relaxado e tranquilo com sua decisão – a não ser pelo pedido que ele fará ao filho, próximo ao final do trecho. Tipo: “Quer uma ceva? Bebe uma aí e não liga para a pistola em cima da mesinha”. Não acha?

Anica: Acho que o que me incomodou é que só fica evidente a profissão (bem como os prêmios que ele ganhou) lá para a última parte do texto. Antes disso, o que o leitor tem em mãos, em uma primeira leitura, é só uma pessoa que apresenta um estilo de falar que vai variando. Talvez no romance essa informação seja dada antes, e aí não cause o estranhamento. Por falar na experiência do pai, achei simplesmente genial aquele trecho da conversa em que ele comenta sobre persuasão. Aliás, vários trechos, grifei muita coisa ali.

Gostei da sua ideia sobre ele estar relaxado com a decisão e por isso falar de forma mais coloquial com o filho em alguns momentos. Dando uma relida aqui, realmente parece bem isso: quando ele conta para o filho a decisão que tomou, relaxa – e vemos o reflexo disso na fala, e de como ele consegue demonstrar os sentimentos para o filho sem medo.

Tuca: Uma boa você lembrar do trecho sobre a persuasão. Também senti uma vontade imensa de grifar alguns trechos, mas me segurei. Parte porque tinha o pressentimento de que logo pegaria um autógrafo com o cara e não queria ficar mostrando muita empolgação com o lápis (sou fã, mas tudo tem limites); parte porque, como disse, só quero reler quando tiver o romance completo em mãos.

Enfim, fiquei feliz pela presença dele na Granta, ainda que ela não fosse nada menos do que esperada (assim como a do Laub). O único momento em que temi realmente por isso é quando ouvi o boato de que todos os vinte autores deveriam estar presentes na festa da FLIP que anunciou seus nomes. Eu sabia que ele não estaria presente, então fiquei temeroso. No final, outros autores também faltaram e tudo deu certo.

Anica: Engraçado, mas eu também tinha como certos o nome dele e o do Laub. Nisso poderíamos até entrar naquela história do pessoal que ficou reclamando que “são sempre os mesmos”, mas, sinceramente, convido qualquer um que tenha alguma reclamação sobre a presença do Galera a me explicar o motivo pelo qual “Apneia” não mereceria estar ali. Não completei a leitura da Granta ainda, mas foi, de longe, um dos autores que mais me agradou até o momento.