O curto reinado de Pepino IV é tida como uma das obras menores de Steinbeck e é preciso reconhecer que ela não possui o mesmo élan, amplitude e pujança de suas obras-primas, tais como As vinhas da ira e A leste do Éden. Contudo, não se pode dizer que seja um livro qualquer, se trata de uma sátira bem construída que por mais que não se apresente tão grandiosa quanto outras obras do autor, não deixa de trazer a luz aspectos interessantes sobre o pensamento de Steinbeck sobre a política e deslindar questões que ajudam a compreender outros marcos de sua produção literária.

O romance em questão foi publicado em 1957 e conta a história de como Monsieur Pippin Arnulf Héristal veio a se tornar, em pleno século XX, Rei da França com a surpreendente aprovação de todos os partidos que compunham a esfera política francesa. Diante de uma deposição presidencial em um ano não especificado (mas no pós-Segunda Guerra Mundial), a decisão de entronar e coroar Pippin é tomada.

Pippin não deseja ser rei, mas pouco pode fazer quando sua linhagem nobre (da fina cepa carolíngia) é trazida à tona e a pressão dos partidos se torna insustentável. O cômico protagonista está mais interessado em observar estrelas em seu telescópio e viver tranquilamente de acordo com os antigos ideais da nobreza, já que seu título e seus rendimentos lhe permitem tais extravagâncias. O poder se apresenta como um fardo em sua vida.

Tão logo Pippin entra no poder, começam a se enfileirar problemas e preocupações, e o idílio de sua vida passada parece cada vez mais atraente. As cobranças por comparecimento a eventos e reuniões, as insatisfações de ministros e políticos, a superpopulação de nobres no Palácio de Versalhes são algumas das questões que devem ocupar seu tempo a partir de então, causando grande insatisfação em Pippin e mostrando a impotência do rei em relação aos grupos políticos que o colocaram no poder.

O livro vai ficando cada vez mais engraçado conforme Pippin vai arquitetando escapadelas de seu trono, convivendo com os deveres de sua posição e pedindo conselhos para as pessoas que ele acha que podem ajudá-lo. A conversa que Pippin mantém com Tod Johnson, um amigo estadunidense da filha, por exemplo, constitui uma das passagens mais hilariantes do livro: o pai de Tod é o rei do Ovo nos Estados Unidos, porque possui uma quantidade absurda de galinhas leghorn, monopolizando, por conseguinte, o mercado. Pippin associa sua posição real com a do magnata do mercado de ovos, achando que o que levou o pai de Tod ao “trono” também deve ajudá-lo (a Pippin) a reger seu país. Os diálogos são emblematicamente geniais.

Steinbeck não poupa ironias ao descrever o status político da França, que segundo ele se caracteriza mais pela instabilidade do que pela estabilidade e que de tempos em tempos alguma crise ou manifestação acaba surgindo. A velha expressão que diz que a França é o “barril de pólvora da Europa” encontra aqui vívida reverberação.

O livro, mais do que uma história de um personagem real ou inspirado em alguma situação real, é uma espécie de fábula sobre o poder e sobre as diferenças do “tempo dos reis” e a modernidade, já que os desdobramentos do curto reinado de Pippin expressam justamente a inadaptabilidade de tal forma de governo (e de compromisso pessoal e de lealdade) aos novos tempos, onde os valores são outros, muito mais pecuniários do que pessoais.

Não se trata, todavia, de uma idealização da realeza nem da decretação de sua falência irrevogável, mas de uma história que nos informa sobre uma conjuntura diferente, burocratizada, em que certas garantias e certas permanências não podem ser mais asseguradas. Creio que O curto reinado de Pepino IV seja mais do que uma comédia, acho que ele possui relevantes aspectos tragicômicos por detrás de sua aparência meramente burlesca.

Por se tratar de uma sátira em que as alegorias acabam surgindo aqui e ali, é difícil precisar a quem ou a que Steinbeck estava especificamente dirigindo suas críticas ou suas chacotas. Contudo, tendo em vista a produção literária do autor em suas recorrências e visões, sua própria vida e as questões que marcaram seus próprios posicionamentos (sejam eles filosóficos, políticos, morais e éticos), se desenham algumas questões que penso prolíficas para serem analisadas:

– A conflituosa relação Europa-América: profundas diferenças separam esses dois continentes e seus modos de vida. Quando Tod Johnson vai aconselhar Pippin, essas diferenças vêm à tona em forma de sátira, ironizando o modo de vida americana, onde o título de rei cabe a um magnata, que está ligado aos negócios e não a linhagem e a pompa caracteristicamente europeias. Vale lembrar que Steinbeck era fascinado pelas lendas arturianas, onde o rei era figura central e seu poder era respeitado por todos. Era uma posição de extremo prestígio, com uma aura mística, não utilitarista e desprovida de pompa como o ‘Rei do Ovo’;

– A situação dos partidos políticos: a conjuntura política cujo embate culmina com a decisão pelo retorno da monarquia é suficientemente burlesco para compreendermos a sátira de Steinbeck. Alguns exemplos dos partidos que participaram da decisão: Os Radicais Conservadores, Os Conservadores Radicais, Os Ateus Cristãos, Os Cristãos Cristãos, Os Cristãos Comunistas, etc. Estapafurdiamente, todos acabam chegando ao consenso de que a melhor opção para a França era a volta da realeza;

– As profundas mudanças desde “a era dos Reis” até 1957 (e em alguma medida até hoje): Pippin, por mais que seja nobre, por mais que sua linhagem remonte aos áureos tempos do Império Carolíngio, em que reinavam Charles Martel e Carlos Magno, não possui nem de longe as características que se exige de um governante nos tempos atuais. A proeminência da economia e de seus ‘figurões’ tornou o jogo bem menos favorável ao rei (a não ser que ele seja um desses figurões ou que esteja do lado de algum deles) e toldou a realidade política e social em outra direção, submetendo-a aos ditames da economia predominantemente capitalista. A falência do reinado de Pippin é a expressão dessa mudança de realidade. Não creio que o livro seja mera celebração nostálgica, um escapismo rumo ao passado pura e simplesmente; mas que se trata de uma opinião que se volta ao presente, conquanto use o passado como mecanismo para fazê-lo;

– O recorrente “culto ao simples” ou a celebração da simplicidade: sempre que aparece uma oportunidade, Pippin se disfarça e encontra um meio de fugir de suas obrigações. Nessas fugas ele acaba, invariavelmente, desembocando em conversas com cidadãos comuns, conhecendo seus ofícios, suas realidades tão mais simples (felizes e despreocupadas) que a sua. Quando dessas ocasiões, as experiências são bem mais proveitosas e humanas do que as que ele experimenta quando está empunhando seu cetro. As pessoas simples que Pippin encontram são mais “heroicas” que o próprio protagonista;

– O discurso de Pippin e sua deposição: o reinado de Pippin encontra fim quando ele manifesta sua simpatia e seu apoio incondicional as classes inferiores da França, aos sujeitos simples com os quais esteve ao longo do livro. Contudo, mesmo essa identificação possui ambiguidade, pois, se por um lado seu apreço pela simplicidade é sincero, por outro essa manobra advém em grande medida dos conselhos de Tod Johnson. De qualquer modo, essa simpatia lhe custou a coroa e por pouco a cabeça junto com ela.

Ao final desse discurso inesperado do Rei gauche (reza a lenda que Steinbeck ajudou Charles Chaplin na elaboração daquele memorável discurso final de O grande ditador), as pomposas vestes de Pippin são arrancadas por infortúnio e ele é desnudado da carapaça real e exposto ao escárnio dos presentes. Parece não haver mais lugar para reis à moda antiga (e todo o modus operandi de seu governo e o compromisso pessoal que ele representava) em nosso mundo, ou pelo menos essa é a opinião de Steinbeck.