Sem consciência, não haveria subjetividade. Não haveria também memória, não da maneira como conhecemos. Não haveria criatividade, nem arte. Mesmo os animais que são capazes de criar não se admiram nem contemplam suas obras. Sem subjetividade, memória autobiográfica ou criatividade, obviamente não haveria literatura. Portanto, para todos os que se interessam e se fascinam com o poder da linguagem (e estou aqui incluindo evidentemente todos os que acompanham o Meia Palavra), a questão da consciência é fundamental. E para tentar entendê-la, poucos seriam tão bem credenciados quanto o cientista português António Damásio, um nome de peso dentro da neurociência hoje – autor de O erro de Descartes, entre outros – e que se dedica, em E o cérebro criou o homem, a apresentar uma visão atual e abrangente do tema.

Damásio distingue três estágios na consciência, tanto em complexidade quanto em precedência evolutiva: protosself, self central e self autobiográfico ((Self é uma palavra inglesa de difícil tradução que captura essa noção de um “eu” consciente.)). São conceitos fundamentais para entender o seu trabalho, mas, ao mesmo tempo, podem ser bastante elusivos. Proponho, portanto, um caminho alternativo a defini-los diretamente: extraí-los de dentro de uma amostra de literatura, mais especificamente, da famosa cena da madeleine de Proust. Talvez isso venha a ser considerado uma afronta, quer às definições metódicas da ciência quer à profundidade imprecisa da linguagem proustiana, mas levanto em minha defesa que ambas –  a literatura e a ciência – no mínimo apontam para o mesmo objeto. Espero, portanto, estar fortalecendo os dois lados, mostrando como são capazes de estabelecer essa ligação entre nossa experiência e o entendimento que criamos dela.

Consideremos então este pequeno recorte de Em busca do tempo perdido, na tradução de Mario Quintana:

Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. (…) Deponho a taça e volto-me para meu espírito. (…) E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto.

O primeiro estágio da consciência, que Damásio chama de protosself, é ilustrado nesse trecho pelo conjunto das sensações transmitidas pelo paladar e pelo prazer “sem noção de sua causa” que o narrador experimenta. O protosself mantém uma representação de todo o corpo, como a posição da mão que segura a xícara, e observa todas as suas alterações, sejam internas ou externas. A partir dessas alterações, ele é capaz também de gerar sentimentos, como o prazer excepcional associado ao gosto da madalena.

No nível do self central, estabelece-se uma relação na mente entre as imagens que representam o organismo, como dadas pelo protosself, e aquelas que representam o objeto contemplado. No caso do trecho citado, a atenção do narrador se dirige ao prazer provocado pela madalena, que passa a ser não apenas um sentimento, mas também um objeto de cogitação. É o self central que nos dá a sensação de que estamos de fato conscientes dos objetos que estão a nossa volta e também de nós mesmos.

Segundo Damásio, o self central “nos dá a pessoalidade, mas não necessariamente uma identidade”. Para isso é necessário ainda incluir ainda o estágio do self autobiográfico, em que a mente representa simultaneamente as imagens de diferentes momentos da vida do indivíduo. É somente graças a esse estágio que o narrador de Proust pode se maravilhar com a redescoberta daquelas memórias que há tanto estavam adormecidas.

Dessa forma, o modelo que Damásio procura fundamentar ao longo do livro pretende mostrar que é possível compreender a consciência como uma transição natural entre esses estágios. A base de tudo teriam sido os mecanismos de homeostase, que aparecem até nos organismos mais simples, e pelos quais o corpo procura se manter dentro da faixa de condições que favorecem sua sobrevivência. A partir daí, aperfeiçoamentos cada vez maiores teriam levado a formas cada vez mais complexas de controle, até a consciência do homem moderno, que o permite criar expectativas e projetos para o futuro.

Para sustentar suas ideias, Damásio emprega uma série de estratégias de investigação, como o uso de imagens de ressonância magnética (fMRI), estudos de inúmeros casos de lesões ou disfunções cerebrais e considerações quanto à precedência evolutiva dos diferentes regiões (o tronco cerebral, por exemplo, que se associa mais intimamente ao protosself, seria mais antigo na nossa árvore evolutiva que o córtex cerebral, que é essencial para o self autobiográfico).

É bom lembrar que, embora esteja voltado ao público leigo, nem por isso Damásio deixa de se expressar como um cientista, incluindo todos os detalhes técnicos que considera essenciais ao embasamento de seu modelo. Mesmo buscando apresentar seus conceitos de uma maneira mais intuitiva, ele não se desvia das explicações necessárias de fisiologia e anatomia. Assim, uma grande parte do livro é dedicada aos mecanismos por trás da formação de mapas mentais, emoções, sentimentos e memórias. Ao final dessa parte, o leitor disciplinado deverá ser capaz de compreender considerações da seguinte espécie: “Como neurônios-espelho, os chamados neurônios-avós são ZCDs. Eles permitem a retroativação multirregional sincronizada de mapas explícitos nos córtices sensitivo-motores iniciais.”

Enquanto aqueles mais ávidos por detalhes encontrarão em Damásio uma fonte de confiabilidade inquestionável (e largamente apoiada pelos artigos científicos citados nas notas ao texto), os leitores pouco afeitos às aulas de biologia não deverão também se desesperar. Embora o livro esteja organizado de modo a privilegiar uma explicação que vai dos elementos mais específicos às noções mais gerais, nada impede que os capítulos finais sejam lidos isolada ou antecipadamente.  O último capítulo, em especial, se dedica a uma discussão abrangente sobre vários temas ligados à consciência, com divisões como “cérebro e justiça” e “natureza e cultura”.

Muitas das hipóteses apresentadas no livro são originais e por isso conflitos com outros estudiosos contemporâneos são inevitáveis. Também a base materialista de suas posições, que considera, em última instância, que processos mentais podem ser explicados por processos correspondentes no cérebro, provocará certamente reações de desagrado em grande parte dos filósofos da mente. Mas o próprio Damásio sabe que existe ainda um longo caminho a ser percorrido e que em muitos aspectos os fenômenos mentais permanecem misteriosos. De qualquer maneira, E o cérebro criou o homem merece ser reconhecido como um excelente livro dentro do que se propõe: ser uma explicação up-to-date da consciência a partir das mais recentes pesquisas de neurociência.