Dentre tantas coisas fascinantes e bizarras no comportamento humano, está nossa necessidade em fugir da realidade e mergulhar em universos fantásticos, viajar para planetas distantes, enfrentar monstros épicos e assistir a destruição de nossa civilização até (quase) as últimas consequências – quando sempre aparece o mocinho para salvar nossa existência precária e reestabelecer as coisas como elas eram. Até o momento, a melhor forma que inventamos para tal mergulho é a arte, com destaque à Literatura (especialmente a ficção-científica) e ao Cinema.
Eis então que sob o comando de um jovem diretor (pouco mais de trinta anos quando assumiu a franquia) a lenda do Cavaleiro de Gotham se tornou o veículo ideal para transportar milhões de pessoas a fantásticas histórias que metaforizam nosso mundo atual, com espaço suficiente para pancadarias e explosões, mas também para mensagens de superação, críticas políticas e sociais e até mesmo elevar o gênero dos filmes de super-heróis a um patamar totalmente novo.Christopher Nolan tornou-se o homem por trás de um dos maiores feitos da história do cinema blockbuster ao, em 2005, com Batman Begins, repensar todo o conceito da saga de Bruce Wayne tirando, para o bem do bom Cinema, toda estética gótica-nauseante empregada por Tim Burton em Batman(1989) e Batman – O Retorno(1992) e também a infantilidade-broxante de Batman Eternamente(1995), de Joel Schumacher.
Nesse rebut da franquia, Nolan e o roteirista David S. Goyer mergulham Bruce em seus mais densos traumas, dando-o, assim, uma profundidade raramente vista em personagens de filmes de ação. A difícil tarefa de vestir a capa foi dada a Christian Bale que, recebido inicialmente com descrença, rapidamente virou o jogo ao dar todos os contornos necessários ao órfão chiropterafóbico que se mascara de bilionário excêntrico para esconder sua real identidade: guardião de Gotham – e vale também destacar o fabuloso trabalho de voz que o ator emprega, dando diferentes tons às vozes de Bruce e de Batman. Bale serviu ao papel de uma forma só antes vista quando Christopher Reeve vestiu a cueca sobre a calça do Homem de Aço em Superman(1978) e atualmente comparável apenas ao excepcional trabalho de Robert Downey Junior em Homem de Ferro(2008) – um herói muito menos interessante do que Batman.
Se Batman Begins reconstitui as origens da lenda, mostrando seu treinamento e levando-o a enfrentar seus medos (e como é fabulosa a cena em que Bruce deixa-se cercar por milhares de morcegos em sua bat-caverna) e um vilão encapuzado que libera um gás que leva suas vítimas a alucinações assustadoras; em O Cavaleiro das Trevas(2008) o que vemos é o domínio do caos: um palhaço assustador controla com facilidade toda a máfia da metrópole, coloca a população em jogos de vida e morte (escancarando questionamentos morais) e vira do avesso um homem aparentemente incorruptível, um verdadeiro herói, Harvey Dent.
O segundo filme da saga tornou-se lendário antes mesmo de sua estreia, pela morte de Heath Ledger pouco antes do lançamento – e muito ainda se especula se a causa da morte do ator teria sido por seu mergulho radical na loucura do Coringa. É claro que um episódio tão atípico e impactante como esse estigmatiza uma obra, mas vendo hoje em retrospecto, com certo (ainda que pouco) distanciamento histórico, é fácil perceber como o segundo filme consegue, de fato, ser extremamente superior ao primeiro.
A inesquecível interpretação de Ledger fez com que, em comparação, o Coringa de Jack Nicholson no Batman de 1989 parecesse amador e forçado e até mesmo o Harvey Dent/Duas Caras de Aaron Eckhart foi imensamente superior à caricatura de Tommy Lee Jones em Batman Eternamente – claro, lembremos sempre que as propostas desses filmes são completamente diferentes. Esse novo Coringa foi tão brilhantemente construído no roteiro e fabulosamente interpretado na tela que acabou ofuscando o herói, fazendo com que muitos fossem aos cinemas apreciar o humor insano, capaz de rir até mesmo enquanto apanha, desse sátiro alucinado que cunhou o bordão: “Why so serious?”.
O irmão do diretor, Jonathan Nolan, se soma à equipe de roteiristas, fazendo de O Cavaleiro das Trevas um filme muito mais soturno e o primeiro da franquia a não utilizar o nome Batman no título. Gotham está envolta em densas trevas e as tragédias que envolvem os protagonistas se mantém até o final e perduram, pedindo explicações que só serão dadas na continuação da saga.
O Cavaleiro das Trevas Ressurge(2012) logo nos apresenta o elemento de contraponto de nosso herói. Bane (o promissor Tom Hardy) é mais que a personificação do mal, ele é a personificação da dor (perceba como a fonética de seu nome se assemelha à palavra pain [dor, em inglês]) e sai como um rato-messiânico, liderando uma seita de criminosos, diretamente dos esgotos de Gotham. Dor é um sentimento que Bruce Wayne se acostumou a sentir, não apenas as físicas pelos anos lutando com bandidos, mas também pela morte de seu grande amor, no final do segundo filme.
O herói que Nolan nos apresenta no começo desse último filme parece incapaz de vencer uma queda de braço com uma velhinha – e de fato, é humilhado pela Mulher Gato (Anne Hathaway em boa atuação, mas não chegando aos pés de Michelle Pfeiffer no filme de 1992), em uma de suas primeiras cenas. Em compensação, o vilão parece invencível, indestrutível e maravilhosamente sarcástico com sua voz arranhada e metálica e com um sotaque algo britânico – ainda assim, menos interessante que o Coringa, fazendo com que Batman reassuma o protagonismo da trama.
Esse final de história tem uma presença inédita em se tratando de filmes do Batman: a luz do Sol. E foi louvável como os roteiristas trabalharam essa ferramenta como símbolo do fim da jornada desse herói que representa o arquétipo da sombra e que enfrentou medos, perdas, derrotas, recomeços e se autodescobriu para que, enfim, pudesse enfrentar seus vilões junto ao seu povo, em uma inédita cena em plena luz do dia. O Cavaleiro das Trevas Ressurge é um filme construído na vertical e o desafio dos heróis é ascender (Rise, do título original, muito mais significativo que o Ressurge da tradução brasileira); os personagens estão sempre subindo ou descendo (literal ou metaforicamente) e o desafio de Batman é impedir que o mal tome conta superfície.
Todos os elementos que fizeram dessa trilogia um sucesso incomparável se sobressaem nesse filme: Hans Zimmer traz uma trilha sonora virtuosa, que mistura cantos gregorianos a batidas eletrônicas; o figurino veste a Mulher Gato com sexies e modernas roupas coladas, mas também clássicas roupas inspiradas em Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo(1961) e Christopher Nolan torra US$ 250 milhões em cenas de ação que nos fazem pular da cadeira e roer as unhas.
Um projeto que se torna exemplo aos filmes de ação, especialmente aos filmes de super-heróis, tão comuns atualmente, mas que apresentam resultados quase sempre decepcionantes, como os recentes Vingadores(2012) e Capitão América(2011) – sucessos de bilheteria, mas nem por isso filmes bons. Acima de tudo, o valor da saga Batman de Christopher Nolan foi captar o espírito de nosso tempo e mexer com questões atuais como, por exemplo, as expressivas críticas ao sistema financeiro feitas nesse terceiro filme, onde a bandeira americana aparece retalhada.
Além de uma direção precisa, vale também reverenciar os atores de peso que deram boas cores aos personagens secundários (não é qualquer um que tem o duas vezes vencedor do Oscar Michael Caine como mordomo) e as decisões corajosas dos roteiristas, como a de sublimar o parceiro Robin e a de matar Rachel Dawes. Assim, com uma eficiência e qualidades de se aplaudir de pé, o diretor transformou o Homem Morcego em fenômeno pop, seus filmes em acontecimentos culturais grandiosos (provocando todo tipo de reação, inclusive tragédias como o tiroteio de Colorado) e ainda nos deu o final ideal para uma saga ousada e já icônica, com o plus de uma cena-final saborosa, relacionada a um clássico e fiel personagem da história de Batman.
Parabéns pela crítica!
PS: Não é Rachel Adams é Rachel Dawes.
Obrigado pelo elogio – e pela correção. Não sei como fiz essa confusão.
Abs.