Há cinco anos faço entrevistas com escritores, e entre o terceiro e quinto ano exercendo esse papel notei o quanto é difícil realizar um quiz de perguntas e respostas, ainda mais quando o tema é o mesmo: literatura. Se é com brasileiro existem as questões financeiras de ser escritor no Brasil ou como é publicar seu livro, inspiração e prêmios.

Não tem como ser diferente na Flip. Com tantas entrevistas agendadas, uma colada na outra, muitos autores acabam por responder às mesmas perguntas e, em grande parte, da mesma forma. Quase como se tudo estivesse ensaiado desde o convite para participar da festa. Esse tem sido o grande empecilho em acompanhar algo com Lydia Davis aqui em Paraty. Não quero desmerecer nenhum periódico e tampouco a entrevista que publicamos, mas não é quiçá interessante notar que desde o início a autora americana tem respondido questões parecidas, talvez por interesse do público mesmo ou por não se inteirarem de tudo que ocorre ao redor, o que tornam suas respostas quase sempre as mesmas.

Levanto essa questão justamente porque na mesa 14, de tema “Os limites da prosa” 1, o que mais se limitou (pun intended) foi o lugar-comum em sua abertura – caindo nas armadilhas de perguntar sobre os microcontos, a voz feminina/masculina de sua obra, etc. – até ganhar proporções satíricas sobre a arte de escrever.

Algum leitor pode apontar que Banville também foi repetitivo, mas duvido bastante, devido à forma como ele se apresentou na mesa. A postura aparentava segurança a princípio, mas o modo como hesitava antes de responder, contraía a boca e parava por um instante curto, bem breve entre uma dose e outra de cachaça, mostravam que realmente era um autor de incertezas. Como se classificou ao falar de sua própria forma de trabalho e inspiração. Em dado momento, Banville não conseguiu classificar sua prosa, chamando-a de “confusão”, antes de finalizar, com bom humor, dizendo que a pergunta direcionada a ele era muito vaga e por isso ele havia divagado tanto. Lydia Davis, por outro lado, fez questão de exaltar que sua prosa é, primeiramente, um afastamento de si mesma para tornar-se o material ou personagem – seja uma mosca ou uma mulher.

Se o tema da mesa acabou não sendo o assunto principal abordado, os autores conseguiram condensar um pouco suas opiniões sobre como é trabalhar com prosa. Davis afirmou que seus contos são fragmentos de uma história e por isso não possuem nem começo nem fim, fazem parte do meio. “A escrita pode ser algo assustador às vezes”, disse Lydia sobre seu método de escrever, que é feito de forma fragmentária, juntando anotações, trabalhando aos poucos. Sua maior dificuldade, em escrever romances, é manter o fluxo de linguagem por muito tempo. Banville, por sua vez, disse ser fundamental para um autor de prosa manter-se intacto durante o período em que escreve o romance, para não perder esse fluxo. “Já passei cinco anos escrevendo um mesmo livro. Quando tinha 24 anos fiz isso. Quando acabei o livro, já tinha envelhecido!”, brincou ele.

Banville buscou por anos os limites de sua prosa, mas descobriu que a escrita não tem regras e quanto mais elaborada e rebuscada fica, mais o estilo se torna puro. Ou melhor, pura prosa. E quanto mais pura, mais seu sentido é perdido.

Porém, ele não se deixou cair na armadilha de parecer um velho que se esquiva das perguntas do mediador ou dono de uma verdade absoluta. A busca pela verdade para ele não existe. O que existe é a jornada sobre a sua “própria” verdade e a necessidade, o compromisso, de se aparecer desnudo.

 

“Nunca gostei de escrever na terceira pessoa, é muito mais difícil. A narrativa na primeira pessoa é mais infantil e gosto de ser infantil, acho que é isso. Quando era jovem gostava de ver pelo outros, era algo que tentava muito. Acho que isso é um limite, a narrativa em primeira pessoa também tem limites, mas acho que pode haver na terceira também” (John Banville).

 

Como toda mesa (entrevista, biografia, etc.) sobre literatura, não poderia faltar a pergunta sobre as influências literárias, e Beckett foi o autor citado. Banville ressaltou as passagens de Beckett sobre a natureza, que considera muito belas e com linguagem muito simples. Lydia contou que leu o autor pela primeira vez com 13 anos e ficou maravilhada ao descobrir que era possível fazer um romance sobre um velho que perde um lápis e depois o encontra.

Por mais séria que a mesa possa parecer para quem não esteve presente, o bom humor dos autores permeou grande parte da discussão. Uma sirene de ambulância invadiu a tenda dos autores quando Banville abria um pensamento sobre sua maneira de trabalhar, ao mesmo tempo em que os papéis de perguntas do público chegavam e, de maneira bem humorada, o autor disse que eram reclamações de todos e que polícia estava ali para intervir. Lydia Davis também se mostrou preocupada com a quantidade de papéis, “Ó Deus, o papelzinho voltou”.

As perguntas do público eram quase genéricas, mas a descontração tomou conta de todo o debate. Davis e Banville tiraram de letra qualquer pergunta, e fecharam com chave de ouro aquela mesa que fora disputada nos dentes. “Escritores não são pessoas humildes”, disse o autor irlandês antes de completar “É um trabalho sangrento”. Mas a pergunta mais intrigante, e não digo isso apenas por ter sido feita por um colunista do Posfácio, era direcionada para Lydia Davis: “Cadê seus gatos?”. Ela explicou que o mais novo está preso no banheiro. Banville provocou “A pergunta é se eles sentem falta de você”, e Lydia rebateu, “Com certeza não, eles são descendentes de faraó, para que precisariam de mim?”. E ficou claro para todos: Banville é dog person.

  1. Texto com anotações de Tayara Calina e Felippe Cordeiro