Imaginar um futuro sombrio, onde o Apocalipse já aconteceu – qualquer que tenham sido suas causas ou sua natureza – é, na minha opinião, uma das possibilidades mais interessantes da literatura. Curiosamente, imaginar a morte da humanidade ou uma catástrofe que venha a quase extingui-la faz com que interessantes aspectos de sua existência venham à tona, tornando possível perscrutá-la sob diferentes pontos de vista, ponderando diferentes elementos de sua dinâmica.

Jack London também imaginou seu futuro pós-apocalíptico, e o resultado foi A praga escarlate, uma narrativa envolvente contada pelo Prof. John Howard Smith – um dos poucos sobreviventes da epidemia – aos demais membros de sua pequeno tribo, seus três netos. Embora breve, essa narrativa possui uma força e uma amplitude notáveis, dignas de um longo romance altamente descritivo, pois London nos conduz por um regresso à antiga civilização como ela existia nos tempos do autor, com algumas modificações, obviamente. O mundo do passado, aquele onde vivera o professor Smith, dava vários sinais de prosperidade e estabilidade quando a praga escarlate assaltou populações inteiras, destruindo-as completamente.

Mas vamos começar do início: a história inicia nos arredores de San Francisco, quando um grupo de caçadores, após uma disputa com um grande urso, passa a escutar o relato do Prof. Smith, uma espécie de elo com o passado, com o mundo que houvera antes que a praga escarlate tivesse dizimado quase a totalidade da população terrestre.

O relato do Prof. Smith é muito bem organizado, e nos põe em contato com toda a desolação da evolução da praga. London se vale do narrador para expor o mundo como era – no caso dele, como de fato fora a seu tempo -, analisar-lhe as estruturas e as dinâmicas sociais, e, por meio dessas, mostrar como veio a decadência através dos micro-organismos que espalharam a praga escarlate.

A descrição da doença é levada a cabo pela investigação dos sintomas que manifestava e como vinha a causar, em questão de pouco tempo, a morte do atingido. Não há grandes explanações científicas sobre a natureza da infestação ou suas causas, precisamente porque um dos objetivos centrais do autor era explorar o processo de decadência da humanidade e não dar lógica perfeita a todos os elementos que desencadeiam a trama. O resultado da infestação é chocante: em pouco tempo são transpostas fronteiras geográficas e são provados ineficazes diversos métodos de controle e combate à epidemia: a humanidade é exposta em sua fragilidade biológica e fisiológica diante da “simplicidade” dos micro-organismos.

O desenrolar de toda a trama repousa na memória do Prof. Smith, ele é um dos últimos elos do mundo que houve – com todo o progresso científico e tecnológico que nele havia sido alcançado -, com o mundo que há – aquele primitivo e meio bárbaro, onde homens são obrigados a caçar para sobreviver. A preocupação do narrador, aliás, é precisamente essa: pôr seus netos em contato com a sabedoria e a herança deixada pela humanidade claudicante, de modo que eles sejam capazes de minimamente recriar a glória dos tempos idos.

Somos, simultaneamente, os netos do narrador, pois ignoramos o que houve e permanecemos curiosos por saber cada pequeno detalhe do relato de Smith; e o próprio Smith, pois vivemos também a angústia de sua narrativa, buscando não deixar que o resto de humanidade e civilização morresse com ele. Jack London nos mantém entre esses dois sentimentos enquanto encaramos as paisagens áridas e solitárias do ano 2073.

O mais curioso de A praga escarlate, entretanto, não é o que ela nos diz sobre o futuro (embora haja quaisquer laivos de acerto aqui e ali), mas sobre o presente, no caso 1912, ano da publicação da história. A descrição do futuro daquela época – nosso presente, no caso; e um pouco além dele – nos dá acesso a um conjunto de visões do autor, seja da hierarquia social rígida e desigual que imperava nos tempos pré-praga, seja das elogiosas – e um tanto ingênuas – descrições acerca do progresso tecnológico e científico, tidos como a herança que a humanidade deixava para os poucos remanescentes da epidemia. Continuavam havendo magnatas, exploração, desigualdade e J.P. Morgans no futuro que a praga escarlate veio a dizimar.

Através das ponderações, dos anseios, dos medos e da visão de London vemos se desenhar um horizonte de perspectivas de sua obra, fruto de sua experiência histórica. London não poupou tintas para descrever a mesquinhez e os problemas da sociedade estadunidense de seu tempo, nem que se valesse de aventuras caninas, de histórias de vagabundos ou de relatos de velhos marinheiros para tal. Seus augúrios pouco otimistas, ainda que estranhamente elogiosos em determinados aspectos, guardam profundos significados acerca de suas opiniões e suas esperanças. Quem sabe não houvesse a chance de um novo começo por detrás de cada angustiada palavra do Prof. John Howard Smith?