Quando somos crianças, o mundo é mais intenso, fresco e cada pequeno acontecimento carrega alguma coisa de incrível. Cada experiência tem um pouco de novo e desconhecido a se tornar familiar. Em o Homem de Areia, o personagem Natanael nos lembra um pouco desse sentimento de curioso e desbravador que toda criança carrega. O conto, no entanto, está longe de ser uma narrativa infantil. Natanael não é mais criança quando sua história é apresentada ao leitor, mas sim um adulto que, por meio de cartas, relembra um episódio traumático de sua infância, que, revivido na fase adulta, faz o personagem beirar à loucura.

O trauma de infância de Natanael era o misterioso Homem de Areia, que invadia sua casa em determinadas noites. Ao badalar das nove horas, o garoto conseguia ouvir a porta da frente se abrir e os passos arrastados subirem as escadas. Nas noites em que o Homem de Areia visitava a família, ele trazia consigo a tristeza da mãe e a apreensão do pai de Natanael. Quando o menino perguntava quem era o misterioso homem e porque era chamado assim, a resposta ouvida era uma expressão que significava que todos estavam fechando os olhos de sono, como se tivessem jogado areia neles e que, portanto, era hora de dormir.

Insatisfeito com a explicação, Natanael perguntara a uma empregada sobre o Homem de Areia e ela disse que era um ser monstruoso que arrancaria os olhos de crianças que não dormissem. Essa explicação foi o combustível para suas fantasias infantis. Natanael recriava na sua cabeça o terrível ser feito de areia e o temia. Certa noite, ao resolver ver o ser com seus próprios olhos, acabou por descobrir que ele se tratava do advogado da familia, Coppelius, um sujeito desagradável e mal que fazia práticas alquimistas com seu pai.  Na última visita do advogado, um terrível “acidente” teria causado a morte do pai de Natanael. Para o então garoto, aquela morte foi um assassinato e Coppelius, sendo o Homem de Areia, jogaria para sempre a névoa da infelicidade em sua vida.  É por isso que, anos mais tarde, quando Natanael se depara com um vendedor de barômetros chamado Coppola, que é fisicamente semelhante a Coppelius, decide escrever ao seu cunhado e amigo, com desespero e temor.

O conto é dividido, dessa forma, em duas partes. Na primeira vemos as trocas de cartas entre Natanael e sua amada, Clara (isso porque, em um ato falho, o rapaz endereça a carta a sua namorada ao invés de seu cunhado, Lotário). A segunda parte é contada por um narrador observador que nos revela o destino do personagem. É na primeira parte que somos apresentados aos fatos traumáticos da vida de Natanael e ao fato dele ter encontrado Coppelius, disfarçado, segundo ele, de vendedor de barômetros chamado Coppola. No entanto, sua namorada tenta-o convencer, racionalmente, de que ele está recriando sua infância e imaginação. Esse descrédito faz com que Natanael fique bastante aborrecido e triste com Clara e, em sua última carta, revela esperar que a situação mude quando eles se reencontrarem.

Inicia-se assim a segunda parte do conto. Natanael reencontra Lotário e Clara, e, como esperava, seu aborrecimento com a amada desaparece nos primeiros dias. Contudo, a sombra de Coppelius continua a perseguir o personagem, que passa a ficar cada dia mais ausente e sério: “tudo, mesmo sua própria vida, lhe parecia apenas sonhos e pressentimentos”, como diz o trecho do conto, relatando esses dias. Natanael se torna uma espécie de personagem de tragédias gregas, com o destino já cerrado. No momento em que viu Coppelius novamente, ele já estava certo de que seu destino seria desgraçoso e que não adiantaria lutar contra isso.

Nos dias que seguem, Natanael faz de tudo para convencer Clara de que a visão de Coppelius no vendedor de barômetros é real. Para isso, escreve textos, poemas e todo o tipo de construção literária. Clara, no entanto, usa sempre a razão para tentar contornar a situação. Para ela, era evidente que o pai de Natanael morreu em experimentos de alquimia e que Coppola em nada tinha haver com o antigo Coppelius. Natanael e Clara passam a brigar constantemente por conta disso, até que o rapaz volta para sua cidade, onde passaria mais um ano estudando até regressar novamente.

Ao chegar em sua casa, Natanael descobre que ela pegou fogo e acaba por se mudar para a frente da casa de seu professor, Spalanzani. O professor possui uma filha chamada Olimpia. O envolvimento de Natanael e Olimpia marca o cruel destino do personagem, indo de encontro com a loucura.

Um ponto importante a se ressaltar no conto de E.T.A. Hoffmann é que, como toda narrativa fantástica, existe a dúvida do que é real e o que é loucura ou imaginação. O leitor pode circular entre acreditar em Natanael e no terrível Coppelius, ou então em uma mera semelhança física que desperta o passado infantil, sonhador e amedrontado do personagem. E isso é só o começo: Natanael já se mostra uma pessoa atormentada desde a primeira linha do conto. Sua loucura aumenta a cada página virada do livro, assim como aumentam as coincidências e fatos surpreendentes.

Uma boa forma de se analisar o conto é partir do nome das personagens principais: Coppelius ou Coppola, por exemplo, significam “buracos nos olhos”. Os olhos (ou ausência deles) são importantes detalhes nas descrições do conto. Por exemplo, no momento em que Coppelius prende Natanael tenta arrancar-lhe os olhos. Anos depois, Coppola vende óculos que se transformam em olhos sobre a mesa de Natanael. Esses detalhes mostram a intensão do autor em intensificar que os dois são a mesma pessoa. Já Clara remete a luz, clareza de ideias e racionalidade. A palavra também carrega a pureza e o espírito do bem. Clara é vista por Natanael como um ser muito frio, calculista e racional, praticamente um robô, mas que se revela, no fim, iluminada.  Olimpia remete à Grécia, ao Olimpo, ou seja, a perfeição. Olimpia é perfeita ou, melhor dizendo, busca ser perfeita e mais que humana, assim como os Deuses.  Por último, Natanael significa “dom de Deus”, para um personagem que acredita que a inspiração não vem de dentro para fora, mas sim de seres superiores para os escolhidos. Natanael também pensa que tudo está traçado em sua vida e que a ele não cabe decidir.

Mas, por que areia?

Seja alucinação ou realidade, por que o terrível Coppelius é retratado como o Homem de Areia? Fisicamente falando, no livro o advogado apresenta mãos ásperas e personalidade desagradável, mas seria isso suficiente? A areia pode mudar de lugar e tamanho e atravessar o tempo, assim como Coppelius se transforma em Coppola. No idioma original (alemão), o nome do conto é “unheimlich”, que não tem tradução direta para o português, mas poderia usar termos equivalentes como “estranho” ou “assustador”. O curioso é que, em alemão, “unheimlich” pode também significar algo que é familiar. E é essa a intensão do autor: Coppelius é um inimigo familiar e estranho, ao mesmo tempo.