As fábulas estão repletas de histórias de princesas que ignoram sua linhagem real ou que, por um golpe do destino, foram colocadas em posições nobres, vide A gata borralheira, Cinderela ou A bela adormecida. Quando comecei a ler O príncipe e o mendigo, do escritor norte-americano Mark Twain, achei que se tratava, pela forma com a qual a história começou, de uma versão um pouco diferenciada de uma trama já consagrada sob vários nomes, vestes e aspectos.

Perseverei na leitura e descobri que O príncipe e o mendigo possui de fato algumas semelhanças com as fábulas acima citadas, mas peculiaridades suficientes para ser algo também delas bem diferente. Se trata de um experimento bastante curioso e rico por parte do autor, que flerta com a ficção histórica e com as histórias da realeza inglesa. A trama toda se passa durante o reinado dos Tudor na Inglaterra e o desenrolar da história revela uma série de intersecções com a própria trajetória histórica da monarquia inglesa num dos momentos cruciais de sua existência e manutenção.

Tom Canty é um garotinho que vive nos subúrbios ingleses, nos cortiços das regiões menos afortunadas de Londres. Ele mendiga sua parca ração diária de comida, apanha do pai, sofre maus tratos da avó e partilha de uma existência fadada à desgraça. Já Eduard Tudor é herdeiro do trono inglês, filho de Henrique VIII, vive na corte cercado de regalias e de criados prontos a atender seus mais insólitos desejos. A vida dos dois garotos não podia ser mais diferente, mas acontece que ambos, cada qual a sua maneira e cada qual por suas próprias razões, sente-se curioso por experimentar uma vida diferente daquela que levam. Suas vontades são atendidas por um golpe do destino, um acontecimento muito improvável que faz com que o pobre Tom Canty seja recebido nos aposentos do príncipe e que, diante da curiosidade mútua – e complementar – de ambos, eles troquem de lugar por algum tempo.

Essa é a situação-limite da qual deriva toda a trama de O príncipe e o mendigo. Me pareceu um tanto clichê – muito provavelmente não o era na época da publicação -, mas nem por isso se tornou menos interessante ver como o criador de personagens memoráveis como Huckleberry Finn e Tom Sawyer ia fazer para lidar com o cotidiano extremamente distintos de cada um dos personagens e – o que eu mais aguardei – como ia fazer para dar cabo das duas histórias.

Mark Twain não é dado a síndromes de Poliana, não tenta amenizar as condições de existência de Eduard na pele de Tom, e também não poupa futilidades e excentricidades meio rocambolescas para retratar a vida palaciana de Tom no lugar de Eduard. Ambos vivem seus altos e baixos, e o autor conduz a história com um ritmo especial – esse é, aliás, o ponto forte de Twain, pontilhar suas narrativas de muitos acontecimentos -, fazendo com que o livro esteja repleto de reviravoltas e confusões do início ao fim.

É quando os personagens estão em seus devidos lugares – ou seja, trocados -, que começa a parte mais curiosa de O príncipe e o mendigo: não a extremamente improvável troca de posições sociais, mas a “americanidade” de Mark Twain. Mais do que uma narrativa sobre a Inglaterra ou uma ficção histórica (tenho um sério ranço com esse termo), é a narrativa de um americano sobre uma trama que se passa na Inglaterra das fábulas e das compilações históricas, com um gostinho de Dickens em cada mórbido beco dos subúrbios londrinos. Longe de tornar o livro menor – embora ele de fato não seja tão representativo quanto os de Huckleberry Finn e Tom Sawyer -, ele torna a leitura mais interessante e até mesmo engraçada de certo ponto de vista.

Apesar de apresentar limitações quando vai tratar da vida na corte e nos cortiços londrinos – ele não aprofunda muito para além da imagem tão propalada e conhecida que se tem desses contextos -, Twain nos mostra uma das marcas indeléveis de sua obra: suas opiniões desfavoráveis a certos aspectos e elementos da cultura puritana, em especial aqueles que deitaram braço na América, a antiga Nova Inglaterra.

É de fato uma experiência curiosa ver a monarquia em O príncipe e o mendigo diante das jocosas passagens em que os alunos da escola de Tom Sawyer recitam suas excessivamente puritanas composições; ou mesmo a ingênua inocência da Miss Watson e da viúva Douglas, as respeitosas senhoras puritanas de As Aventuras de Huckleberry Finn. A monarquia inglesa, embora com leis um tanto cruéis, costumes elitistas, cercados de regalos e futilidades e praticante de procedimentos tão ritualísticos quanto burocráticos – como aparece no livro em questão -, tem, no “balanço geral”, uma imagem bem menos satirizada do que aquele puritanismo achincalhado nas aventuras de Huck e Sawyer. Talvez houvesse ainda uma lufada do passado cavaleiresco, medieval ou romântico na Inglaterra que Twain retratou em O príncipe e o mendigo. Se houve, ela não era intensa o suficiente para fazê-lo esquecer das paisagens, das cores, dos sons, dos cheiros, das memórias e dos sujeitos alegres que habitavam às margens do Mississipi.

Para se ter uma ideia disso basta-nos checar como se comportam os personagens trocados. Eduard não abandona sua pompa, mas é obrigado a se adaptar às condições precárias de sua nova identidade, e, apesar de todas as adversidades que é obrigado a atravessar, descobre na vida humilde e sofrida um calor e uma solidariedade que não encontrava na fria e ritual vida na corte. Tom Canty, por outro lado, não se deixa “corromper” pelas veleidades e pelas mordomias, aceita-as de antemão, usufruindo de possibilidades que nunca teve, mas não consegue viver com a consciência a atormentá-lo. Quando no poder, Tom, ao invés de sintonizar-se aos expedientes do poder, usa de suas novas prerrogativas para mudar as severas punições de algumas leis. Ou seja, olhando desse modo, mais panoramicamente, há mais a se aprender e há mais de humanidade naqueles sujeitos que vivem fora da vida luxuosa da realeza.

E assim O príncipe e o mendigo deixa de ser mais uma fábula clichê para se tornar uma fábula distinta, que mantém aquele tom conciliatório de final confortável, mas que subverte alguns conceitos clássicos bem ao estilo satírico, simples e aventuroso de Mark Twain. Eis como nas fissuras dos grandes bustos do cânone se escondem pequenos segredos tão curiosos e interessantes quanto aquelas lisas e bem lapidadas circunvoluções mais visíveis.