Com precisão ninja, um grupo encapuzado monta um gabinete numa arejada sala de estilo clássico. Instalam o tapete, põem a mesa e até organizam as canetas e papeis sobre ela. Entra uma mulher nua, e agora no gabinete já pronto, só está ela e… um imenso crocodilo. Ela senta no chão diante do animal, abre as pernas, o crocodilo brame, ela caminha em sua direção e entra por sua boca.

Não, esse não é um filme de Luis Buñuel, não é uma continuação de Um Cão Andaluz (1928), mas sim um inteligente drama político conduzido com ritmo de thriller por Pierre Scholler e sustentado por fortes interpretações.

Bertrand Saint-Jean (o magnético Olivier Gourmet) é o Ministro dos Transportes da França e a cena que abre o filme é de um sonho seu – e que lhe provoca uma ereção. Mas ele logo desperta desse surrealismo e tem que enfrentar as tarefas de sua função quando um ônibus com dezenas de jovens sofre um acidente numa estrada do interior. A partir daí, é um incêndio atrás do outro, mas o filme nos leva a crer que antes de “nossa presença”, antes de acompanharmos seu dia-a-dia, as coisas já seguiam esse ritmo.

Por mais que Olivier não seja um ator atraente, seu personagem torna-se, sem dúvida, aquele por quem nós torcemos (se bem que, numa trama política é difícil haver alguém a quem torcer), porque mesmo ao vê-lo fazendo concessões ou sendo desagradável e grosseiro em alguns momentos, Bertrand é um raro tipo bem intencionado, irremediável workaholic que tenta driblar a máquina e derrotar com o mínimo de bom senso seus adversários, dentro de um governo que aparentemente se mantém unido.

Um filme feito no momento certo, no lugar certo (algo semelhante ao que Nanni Moretti fez em O Crocodilo, 2006, no começo dos escândalos de Berlusconi): em meio a atual e delicada crise do Euro, das turbulências no capitalismo e da derrota de Nicola Sarkozy às pretensões de reeleição. Assim, o diretor Scholler merece o elogio-clichê de “nunca deixar a peteca cair” ao conduzir muitíssimo bem uma história complexa, mas clara, por quase duas horas e sem dispersão da audiência.

Engana-se quem pense que esse é um filme só para iniciados – ou seja, só para os que leem religiosamente o caderno Internacional dos jornais. O filme aborda a política, mesmo que num pano de fundo classicamente francês, com um escopo universal. Flertando com a máxima de Aristóteles de que “o homem é um animal político”, joga o Ministro para interagir com grevistas (e quase apanhar deles) e mostra sua relação de respeito com os seguranças e motoristas para contrastar com a falsidade e rancor que tem para com seus companheiros de governo.

Não há muita diferença entre Bertrand em seu gabinete e Bertrand que, jantando casa de seu chofer e já visivelmente embriagado, discute sobre a realidade do povo francês com a furiosa esposa do funcionário. Pouco a pouco, porém, esse bem intencionado, amarrado a uma burocracia aprisionante, em meio a um governo que o contraria e refém de um sistema econômico que começa a desmoronar, deixa-se cercar pela lama até um ponto em que não há volta. Mas o que nos enoja aqui não é a corrupção (como seria, provavelmente, numa trama brasileira) e sim os desvios morais e a ambição desses homens do poder.

Sem entregar a trama – até porque o objetivo dessa resenha é que você vá ver o filme –, depois de surpreendentes acontecimentos que irônica e melancolicamente parecem sinalizar que quem leva a pior é, invariavelmente, o povo, o Ministro Bertrand, preso a ordens superiores que o desagradam, mas sem escolha senão obedecê-las, vê sua sorte virar bem no momento em que está sentado no vaso sanitário do banheiro de seu gabinete – e não pense nem por um instante que isso é fortuito. Sem pensar duas vezes (“Posso dar a resposta agora? Sim, eu digo absolutamente sim” – ele responde a oferta que recebe na ligação), Bertrand levanta do trono e deixa-se engolir pelo crocodilo.