Os Estados Unidos do início do século XX foram palco de uma porção de transformações. A antiga sociedade do século XIX ainda estava arraigada nos corações, nas mentes e nos costumes das pessoas, mas novos tempos – a modernidade – se instilava pouco a pouco nos rincões mais comuns e banais da vida social, fazendo com que o velho convivesse constantemente com o novo. Um dos pontos em que é possível enxergar essa convivência é na indústria da carne, onde coexistiam os métodos tradicionais de abate com a pressão da linha de produção num labirinto de entranhas, carcaças e sangue.

Em 1906, o semanário Appeal to reason (Apelo [ou Chamado] à razão, uma publicação marxista) contratou Upton Sinclair, então jornalista, para viajar a Chicago e retratar, através de artigos para o semanário, a situação dos trabalhadores dos abatedouros que lá se encontravam. Assim como Steinbeck se sentira com relação aos despossuídos da crise de 29 e James Agee com relação aos lavradores do Alabama, Upton Sinclair não pode se manter indiferente às injustiças que se abatiam sobre os pobres trabalhadores dos abatedouros: era preciso fazer algo mais. Esse algo mais resultou, além de um impacto gigantesco sobre sua própria visão de mundo, em The jungle (A selva), livro que retrata as mazelas da vida dos trabalhadores da indústria da carne.

The jungle se vale de uma construção literária bastante interessante. É estruturado num realismo cruento, que não precisa “buscar dramas”, basta retratar o visto e vivido o mais diretamente possível, uma vez que a realidade da qual fala já é prenhe de tragédias. Procura, por meio desse realismo, em busca do máximo de fidedignidade e crueza, criar interpretações que abarcassem toda uma conjuntura sócio-histórica. Upton Sinclair não se contentou em expor as mazelas que caíam sobre a família lituana – protagonista da história; ele buscou também, através da construção de todo o background, interpretar quase sociologicamente a realidade em que eles se encontravam.

A história começa num casamento: unem-se nos laços matrimonias Jurgis Rudkus e Ona Lukoszaite, ambos imigrantes. Os dois viviam com Marija e Teta Elzbieta, respectivamente prima e madrasta de Ona. Toda a família vive em Packingtown, um distrito industrial de Chicago, e tem seu destino ligado a Brown’s Company, uma indústria de processamento de carne que aglomera a seu redor uma multidão de trabalhadores, grande parte deles imigrantes, os quais constituem sua mão-de-obra mais importante.

A trama ficcional do livro, aquela que concerne à família Rudkus-Lukoszaite, se passa toda em torno do cotidiano desses trabalhadores: há descrições dos locais de trabalho, do processo de produção em suas várias etapas, da relação entre os trabalhadores e entre eles e os patrões, da comida, das moradias, das roupas, costumes, trejeitos, anseios, sonhos, decepções, amores, aventuras e desventuras. Sinclair não poupa detalhes ao procurar recriar literariamente a experiência existencial imediata naquele contexto do ponto de vista desses sujeitos, como quando Jurgis, preso, deseja que sua família estivesse na cadeia, pois lá teriam abrigo e alimento, ou quando Teta se prostitui para alimentar a família.

Se alternando com esses capítulos estão os que se encaixam com a história da família protagonista na medida em que nos fornece acesso à conjuntura econômica e social na qual estavam todos eles entrelaçados. Nesses capítulos o autor prefere investigar as dinâmicas de produção, a forma como os imigrantes são obrigados a negociar com os patrões sem nem sequer saber rudimentos do inglês, como a lei está organizada para beneficiar a indústria, como funcionam os mecanismos de exploração, o comportamento da multidão e, mais espetacularmente, o sanguinário abate e processamento da carne. Esses capítulos estão repletos de descrições do degradante trabalho que executam os imigrantes e são também eles pouco a pouco abatidos naquele mesmo mecanismo em que são engrenagens.

Conduzindo o livro nesse constante diálogo, Upton Sinclair nos leva a conhecer a história de Jurgis e de suas tragédias operárias ao mesmo tempo em que nos apresenta um panorama da situação a que estavam submetidos uma porção de outros trabalhadores. Ao falar da vida de míseras rendas e de exaustão física, ele recria a experiência operária estadunidense no início do século. Ao tratar do abate e da evisceração das carcaças, ele nos leva a conhecer as entranhas da sociedade norte-americana num momento em que ela passava por um acirramento da “lógica” do lucro. A selva que dá título ao livro é o ambiente social em que a história se passa: a barbárie é expediente cotidiano e a luta por sobrevivência urge a tudo e a todos, pois as caraças de bois e porcos pendurados são uma espécie de profecia macabra em relação a todos os trabalhadores. A distância existencial que separa um e outro, carcaça e trabalhador, diminui a cada página, e junto com o sangue, que escorre pelo gradil do chão, parece esvair-se também toda a esperança.