Ultimamente tenho lido muitas notícias a respeito de livros considerados, de alguma maneira, inadequados: Monteiro Lobato precisa retirado das escolas públicas, por conta de determinados conteúdos racistas; Dalton Trevisan foi excluído das listas de livros de alguns vestibulares por seu cunho imoral, pornográfico ou coisa que o valha. As opiniões se dividem. Muitos são a favor: não se pode ensinar as crianças o uso de termos racistas, não se pode expor os jovens à imoralidade – de forma compulsória. Outros, radicalmente contra, pois alegam que não se pode cercear a liberdade de expressão em nome de uma ditadura do politicamente correto.
Pessoalmente discordo de tudo isso. A ideia de excluir algum livro de onde quer que seja (e ainda mais quando de espaços relacionados à educação) me soam absurdas e os argumentos daqueles que defendem isso me soam equivocados; mas considero exagerada a reação de classificar isso como censura.
Em primeiro lugar, discordo de qualquer tipo de cerceamento à liberdade, e acredito que, sendo os diversos preconceitos problemas em nossa sociedade, não se deve calar a respeito. Não é fingindo que o racismo não existe que ele vai desaparecer. Entra, aliás, nas possíveis funções (?) da literatura expor os problemas da cultura que a gerou. Logo o problema não seria o que se lê, mas como se lê: se as crianças são expostas à obras que tratam de modo condenável algum grupo, é dever dos pais e educadores discutir com eles a respeito, mostrar-lhes porque o preconceito que estão lendo é errado. Do mesmo modo, aliás, que os adultos deveriam fazer. Dizer que a leitura pura e simples de Monteiro Lobato tornaria uma criança racista é quase como dizer que a leitura de Passos de caranguejo, de Günter Grass, cria neonazistas, ou dizer que a leitura pura e simples do Werther, de Goethe, causou suicídios (afinal, nem todas as pessoas que o leram se mataram – hoje em dia, inclusive, isso parece ter deixado de acontecer, o que me faz crer que ou isso é uma lenda ou que o problema era cronológico e essas pessoas teriam se suicidado por outros motivos, caso Lotte tivesse aceitado o amor de Werther).
Mas, como disse, não concordo em chamar isso de censura. A ideia não é impedir que as obras circulem, é limitar seu uso pelo sistema educacional – evitar expor as crianças e jovens a determinadas coisas. É equivocado, mas não é censura. Ninguém diz que é censura quando um (raro) jornaleiro se recusa a vender a Playboy para um adolescente. E não, não faz parte da tal ditadura do politicamente correto.
Politicamente correto, aliás, é um termo que eu sequer reconheço. Junto com liberdade de expressão, é um dos termos favoritos dos conservadores. Geralmente as duas coisas são utilizadas em combinação para defender a livre expressão de preconceitos, justamente quando esses preconceitos são explicitados como tais. Um breve exemplo: uma o sr. X fala que ciganos são ladrões, que judeus são gananciosos e que homossexuais são promíscuos. O sr. Y acusa, acertadamente, X de estar sendo preconceituoso. X revida dizendo que Y não pode dizer isso, pois ele (X) está apenas se utilizando de sua liberdade de expressão. Em seguida, diz que Y é um ditador do politicamente correto. Ou seja, X pode dizer o que quer, mas Y é um ditador ao rebater-lhe os argumentos. De vez em quando a coisa pode ser ainda pior. X poderia ter defendido seu direito ao preconceito – afinal ele pode não gostar de gays, de negros, de judeus ou de ciganos, e impedir isso é cercear sua liberdade.
Apesar de ter problemas com pessoas homofóbicas, racistas, antissemitas, machistas e preconceituosas de maneira geral, não posso impedir a existência dessas pessoas, nem lhes arrancar o seu tão caro direito de ‘não gostar’. Mas a liberdade de expressão é bilateral, e essas pessoas devem saber que não é a ditadura do politicamente correto apontar os preconceitos. Se alguém pode xingar negros, esse alguém pode (e deve) ser chamado e tratado como racista.
O mesmo vale para a literatura. Uma infinidade de autores usa termos e discursos racistas, machistas e homofóbicos. Não devem ser retirados das escolas, das bibliotecas, não podem ser impedidos de circular e nem alterados ou suprimidos de qualquer modo. Devem, porém, ser lidos com a consciência de que o preconceito que está estampado naquela obra é um reflexo da cultura que a originou. Viagem ao fim da noite, de Céline, é um grande livro. Mas um livro antissemita. Escrito por um autor antissemita, em um mundo profundamente antissemita – em uma época que ainda nem soava tão ruim ser antissemita (a não ser, é claro, para os judeus e para um ou outro indivíduo um pouco mais consciente). Da mesma maneira muitas outras obras e autores estão carregados com preconceitos, alguns quase invisíveis – justamente porque estão profundamente arraigados nos leitores (como a grande parte da tal chick-lit, carregada com uma heteronormatividade e um machismo que beiram o absurdo).
Acredito, portanto, que tanto Céline quanto Monteiro Lobato devem ser lidos. Dalton Trevisan, idem. E todos os outros autores, por melhores ou piores que suas literaturas sejam. E se em qualquer destas obras existe algum preconceito – e quase sempre existe – não é motivo para que os livros sejam deixados de lado. É mais um lembrete do quanto o nosso mundo, que em última análise inspira todo e qualquer livro, pode ser um lugar triste.
sempre haverá livros censurados, banidos, discriminados, perseguidos e odiados em cada época, sejam por quaisquer motivos q se possam justificar como válidos p aquela geração. mas eqto as pessoas passam, o livros continuam.
Bonito ver a nossa conversa transformada em uma coluna do Meia. : )
🙂
Muito bom o texto, Luci.
(O típico comentário que não leva a lugar nenhum, mas que, bah, acho necessário fazer.)
Abraço, rapaz!
Gracías!
Eu sugeri, há algumas semanas, que a Anica falasse sobre os “livros proibidos”. Agora, entro no twitter, e ela me fala: “o Luciano falou antes de mim”.
Enfim, o texto ficou lindo. Gostei do equilíbrio que você deu para a coisa toda, o que costuma ser difícil de acontecer, uma vez que a maioria das pessoas, ao falar sobre o assunto em questão, acaba sendo extremista.
Eu resumo a ideia da seguinte maneira:
Céline era um babaca, mas escrevia bem.
Friedkin é um babaca, mas dirige bem.
Noel Gallagher é um babaca, mas canta bem.
Lutero era um babaca, mas pregava bem.
O que precisamos fazer é dissociar a arte do indivíduo. O fato de ele ser bom fazendo algo não o torna um santo. E se o artista não é santo, muito menos o é cada um de seus apreciadores. Hipocrisia é recriminar a mente por trás de alguma obra que lhe soa desagradável quando seria preciso um método Ludovico pra conter os impulsos da humanidade inteira.
Perfeita Colocação final. Porém, anteriormente, eu discordo que a Obra não justifique o Autor. Toda Obra é uma visão do seu Autor, independente de ser boa ou não! Toda criação fala sobre o Autor… Sobre ele, suas emoções, sobre as pessoas… Sejam quais forem ou o que façam. Eu escrevo. Sou Dramaturgo. E a minha Matéria Prima é o ser humano, em todas as suas evidências e circunstâncias. Para um Autor, nada ou alguém é absoluto, assim como ele mesmo. Mas, na Obra está literalmente, o que ele sente, através da alma. Estou longe de ser um Santo… Porque nenhum humano o é…
Muito bom o texto. E como disse a Valentina, muito equilibrado (equilíbrio esse que é difícil de se manter no campo do “politicamente correto x censura”). Encaro da seguinte forma, cada obra reflete o período no qual foi escrito e é justamente por isso que é importante ser lido e analisado de forma crítica, principalmente dentro das escolas (mas desde sempre não é interessante colocar as crianças e jovens para pensarem de maneira crítica).
Barbudim!!, adorei a coluna e a crítica. Estou de acordo contigo. O que me preocupa é quando estes livros são dados nas escolas sem a devida análise e discussão entre professor e aluno, sobretudo porque professores não são preparados para isso. Além do mais, muitas escolas têm medo de adentrar discussões ditas “polêmicas” em sala de aula, com medo da repreensão de pais conservadores. Daí é mais fácil excluir os livros, varrer a sujeira pra debaixo do tapete e fingir que o problema não existe. Acho que a escola, por excelência, deveria ser o espaço para esse tipo de debate e análise – já que o livro é a reprodução de nossa triste sociedade, porque não lê-los para melhor conhecê-la?
Não podia concordar mais.
Exatamente! Se é errado, o negócio é fazer as crianças (e qualquer pessoa) perceber isso por si só, não impor…
Desculpe mas é muita ignorância. O autor não leu Monteiro Lobato, não entende nada de história nem da gravidade do racismo. NÃO HÀ NENHUM CERCEAMENTO Á LIBERDADE. O que há é uma RECOMENDAçÃO DE CONTEXTUALIZAÇÂO. E É muita maldade ser contra a qualquer cerceamento à liberdade. O autor é a favor da KKK? De cortar clitóris das meninas? De ficar atirando em cachorro na bolívia para treinar tiro ao alvo? Então, já começou mal. Monteiro Lobato era RACISTA e como tal deve ser repudiado. Ninguém pode chamar um negro de macaco como ele faz em seus livros com Tia Nastácia. Para você ter uma ideia de quem era o autor, ele escreveu O presidente Negro, visando o mercado americano. Mas os EUA acharam o livro racista ao que ML escreveu , decepcionado par o amigo Godofredo Rangel como citado em Arnaldo Bloch : eu devia ter vindo para cá na época em que linchavam os negros. Quando começou essa polêmica escrevi issohttp://casosecismas.blogspot.com.br/2012/09/o-mundo-ser-revisitado-que-monteiro.html
e recomendo issohttp://www.scarium.info/2009/resenhas/o-presidente-negro-sintese-do-pensamento-racista-de-monteiro-lobato/
Cada vez em que alguém se diz não racista apesar de ter lido monteiro lobato, mente, pois é conivente com o racismo desse país. Veja um comercial de dentifrício ,cheio de dentes e dentistas para ver se há um negro sequer no conjunto!
Cada vez que usamos OMO ou DOVE estamos colaborando com maldades em animais. Então, se o mundodesse jeito não deu certo, apoiar atitudes racistas, sexistas só pode ,não há outra interpretação possível, significar desejos de privilégios.
O mais engraçado disso tudo é parece que quem não leu as coisas foi você. Afinal o que eu proponho é justamente a contextualização: que leiam o livro, mas usando a leitura para discutir como e porque o racismo é errado. Que chamem o Monteiro Lobato de racista, sim! Mas que entendam as razões disso!
Porque é ignorância falar que se deve simplesmente abolir o racismo, sem que se entenda: acredito que seja um pré-requisito do pensamento crítico a necessidade de entendimento de qualquer coisa, antes de aceita-la (mesmo as coisas mais obviamente benéficas, como o repúdio ao racismo e aos preconceitos).
E o que você diz sobre Omo, Dove e outras coisas é bem verdade. Mas, se você não usa tais produtos, não se apresse em se julgar santa: independente da marca, o computador que você usa certamente tem algum componente chinês – cuja mão-de-obra é sempre ‘duvidosa’, devido às leis do país em questão. Você conhece as pessoas que plantam e colhem o algodão das tuas roupas? As que costuram? Como ter certeza de que não endossa a crueldade com animais e pessoas ao usa-las? Você não come carne e é vegan, para se opor à dominação dos animais? Acho louvável, eu mesmo não como carne. Mas lembre-se de que se come qualquer coisa que foi plantada em latifúndios, é como se comesse carne de camponês.
Eu sou a favor de todas as causas pela liberdade e contra o preconceito. Sou feminista, queer, vegetariano, a favor da libertação animal, antirracista, antissionista e por aí afora. Sou contra que se atire em cachorros por qualquer motivo, assim discordo de que se mate bois pra comer. Sou contra cortar o clitóris das meninas, o prepúcio dos meninos e contra que se force as transsexuais a fazerem a mudança de sexo para que tenham seus direitos de mulher reconhecidos (não é, afinal, a vagina que define se são mulheres ou não). E sei, mais do que qualquer outra coisa, que se tenho a liberdade de perder meu tempo pensando nessas coisas (e não simplesmente trabalhando para sobreviver, como a imensa maioria dos seres humanos) é porque tenho uma série de privilégios – que gostaria que todas as pessoas tivessem, mas alcançados de modo reflexivo e racional, e não a partir da imposições cegas.
“Cada vez em que alguém se diz não racista apesar de ter lido monteiro lobato, mente, pois é conivente com o racismo desse país.”
Sou culpado. Me processe.
Parabéns pelo artigo! Sensato, ponderado, claro, sem discursos inflamados.
Obrigado!
Obrigado Luciano, estava me achando um marciano. Pensar, dialogar, respeitar a opinião alheia e ser respeitado está fora de moda, é perigoso e gera reações como as da Angela, pois hoje o importante é destruir os inimigos(pois se você não compartilha do mesmo pensamento, você é inimigo) principalmente no facebook, um mundo virtual que se acha mais importante que o mundo real onde o politicamente correto reina e não se pode ir contra a corrente. Parabéns!!!!
QQ dia vai se ficar o dia todo um pedindo q o outro entre primeiro no elevador.
Um filme q mostra até onde pode haver esse exagero é um do Stalone, onde ele é “acordado” no futuro para capturar um criminoso tb vindo do passado.
Numa cena antológica, ele fica desfiando palavrões e “muçltas” são lançadas de um orificio na parede e ele simplesmente as pega e as vai rasgando..
Menos, pessoal, menos…