A vinte e quatro quadros por segundo, o Rio dá boas-vindas a outubro ensolarado, e o mês começou em plena segunda feira, dia de faturar, dia de fazer a roda do mundo girar. Mas eu, aluno ainda no recesso do pós-greve das universidades federais, recebi o presente dos céus de ter mais alguns dias livres, assim, acompanho o Festival sem peso na consciência, mas não totalmente impune: na fila da sessão, tive que ouvir a gracinha do vallet do estacionamento, dizendo: “Pô, essa gente não faz nada da vida, só vai no Cinema?”. Pois é, amigo, a gente só vai ao Cinema. Vida boa, não?

Vamos à programação destes primeiros dias:

SEGUNDA-FEIRA, 1° DE OUTUBRO

(ou: Matthew McConaughey Day – calma, você logo entenderá)

Às 12hs: Woody Allen – um documentário, de Robert B. Weide

O doc que acompanhava Woody Allen dirigindo era um dos filmes que mais aguardava. Na sala lotada – onde também estava a “brabuleta” Claudia Abreu (quem é noveleiro entendeu) –, as luzes apagaram e a sessão começou… muda. A plateia de homo sapiens então se lembrou dos irmãos símios (com razão) e começou a gritar e bater os pés. A gerência entrou, informando que o problema técnico (sempre ele) estava sendo resolvido. Dez minutos depois, a mesma gerência (sempre ela) retornou, informando que a sessão estava cancelada. Fila novamente no caixa, agora para receber o estorno do ingresso, mas preferia mesmo era ter visto-e-ouvido o segundo melhor neurótico que conheço – depois de mim, é claro.

Às 14hs: Magic Mike, de Steven Soderbergh

Eis, então, que assim, de repente, a segunda virou um Matthew McConaughey Day. Nesse improvável filme de Soderbergh, McConaughey é o dono do clube noturno Xquisite, um tipo Clube das Mulheres onde trabalha o Mike do título (Channing Tatum, o ator mais rentável de Hollywood nesse ano, num papel excelente). Mike então leva ao clube um novato e toda a trama desenrola-se muito bem a partir daí. Certamente o filme sairá em circuito comercial, recomendo a quem gosta de cenas envolvendo danças sensuais com homens descamisados.

Às 16hs: Killer Joe – Assassino de aluguel, de William Friedkin

Logo na sequencia, dei um pulo na cadeira ao perceber que o Joe do título era o mesmo McConaughey que havia visto nas ultimas duas horas. Não gosto do ator e tenho bronca do diretor (cinéfilo tem dessas coisas), mas esse novo filme de Friedkin é tão bom que as limitações do protagonista passam despercebidas. Esse Friedkin, que há tempos não fazia algo no nível de suas grandes obras (Operação França e O Exorcista), faz uma obra que remete a Tarantino, aos Irmãos Coen e a clássicos do faroeste, mas, ainda assim, com um estilo muito pessoal.

TERÇA-FEIRA, 2 DE OUTUBRO

Às 14hs: A Cidade, de Liliana Sulzbach

Competindo na categoria Curta-Documentário, o filme acompanha depoimentos dos moradores de uma cidade da Região Sul que, no passado, era uma fortaleza que separava leprosos, do resto do mundo. Todos os sobreviventes foram deixados no local por suas famílias. Hoje, restam apenas trinta e cinco deles, todos acima dos sessenta anos.

NA SEQUÊNCIA: O Dia Que Durou 21 anos, de Camilo Tavares

“O Golpe Militar de 1964 no Brasil contou com a ativa participação do governo dos EUA” – essa é a plot do doc nacional, concorrente da categoria de Longa-Documentário. Uma excelente colagem de depoimentos de estudiosos do período histórico e gravações telefônicas tenebrosas dos presidentes Kennedy e Lyndon Johnson, que chegaram a mobilizar tropas americanas para garantir o sucesso do golpe que afastou Jango da presidência. Uma polêmica teia que une os militares brasileiros ao poder americano.

Às 16hs30: As Sessões, de Ben Lewin

Baseado numa história real, o filme que traz de volta às telas a vencedora do Oscar Helen Hunt (de Melhor Impossível), conta os desafios de Mark O’Brien, paralisado por uma poliomelite, que aos 36 anos decide perder sua virgindade. Com sutileza necessária e humor pontual, deixou a plateia satisfeita.

QUARTA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO

Dia de apenas um filme (porque até cinéfilo tem mais o que fazer), mas um filme que certamente valeu por muitos…

Às 12hs15: Indomável Sonhadora, de Benh Zeitlin

O homem é um animal – ou uma fera, como trata o título original, Beasts of Southern Wild, muito melhor que o título em português. Numa comunidade isolada da metrópole por uma barragem, pai e filha vivem numa relação de extrema humanidade, mais saudável e amorosa que inicialmente supomos. Partilhando moradia e alimento com outros animais, a pequena Hushpuppy vive numa constante poesia involuntária, natural, ouvindo o coração de cada bicho, sentindo o universo ao seu redor. Os problemas de sua vida de extrema miséria, do alcoolismo e da doença do pai são encarados por ela sempre como naturais, consequências da vida. Assim, a forte metáfora desse belo filme-poesia, com atuações delicadas e precisas e roteiro certeiro é mostrar que em nossa irremediável fragilidade humana, devemos enfrentar de peito aberto as feras e bestas que cruzam nosso caminho.

QUINTA-FEIRA, 4 DE OUTUBRO

(ou: O dia que encontrei Eduardo Coutinho – em breve, um post dedicado apenas a isso)

Depois de esbarrar com o grande documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, diretor do clássico Cabra Marcado Para Morrer, eu e meu coração de cinéfilo fomos à sessão do filme-cult-hipster-quase-indie-e-independente de Matheus Souza.

Às 16hs30: Povo Fala, de Luka Melero

O curta-curtíssimo (quatro minutos) é o relato de Maurício Hora, fotógrafo, filho de um dos primeiros traficantes do Rio de Janeiro, nascido e criado no Morro da Providência, a primeira favela da América Latina. O fotógrafo discorre sobre a infância no morro e a legalização da maconha.

NA SEQUÊNCIA: Eu não faço a menor ideia do que tô fazendo com a minha vida, de Matheus Souza

Com orçamento de vinte mil reais, o jovem diretor apresenta uma obra muito superior a muitos filmes com dezenas de patrocinadores e contemplados pelas leis de incentivo. Cheio de referências atuais, piadas sintonizadas com o universo jovem e também uma estória interessante, o longa acompanha Clara, estudante de medicina que cabula aula e, incentivada por um amigo, começa a experimentar diversas atividades para tentar descobrir o que realmente quer da vida. Descobrimos, contudo, que não apenas Clara, mas todos os adultos de sua família de médicos não sabem o que estão fazendo com a vida – e quem de nós sabe?

No final da sessão, a surpresa de que teríamos um debate com o cineasta, um jovem interessante e engraçado, aberto a críticas e sugestões e claramente apaixonado pelo Cinema. A conversa girou em torno de como dirigir com baixíssimo orçamento (vale lembrar que o primeiro filme do cineasta, Apenas o Fim, foi feito com o dinheiro levantado com a rifa de um whisky) e como é distribuir no Brasil, dominado, especialmente, pelo poder da Globo Filmes.

Matheus criticou a linguagem do humor brasileiro, considerando-o ultrapassado: “Estamos fazendo comédia que, mundialmente, já está fora de moda”, disse ele – “Não se pode fazer um filme nonsense no Brasil, o público não entende”, considerou o cineasta, que acha que a evolução do humor no país tem que ser dado passo a passo, experimentando novas linguagens gradualmente. Também reclamou dos cri-críticos de Cinema que,em algumas exibições em Gramado, pareciam estar pré-dispostos a considerar a obra apenas mais uma comediazinha romântica.

Nesse seu novo filme – que pelo orçamento tão baixo teve os cartazes de divulgação para o Festival de Gramado feitos à mão, pelo próprio cineasta e seus amigos –, Matheus mostra-se sintonizado com o humor da juventude atual, o humor-de-9gag, dos stand-ups e das referências ao cotidiano – muito além do humor requentado do Zorra Total ou do já falecido Casseta & Planeta. São várias as piadas à cultura tangente e atual (a minha predileta foi sobre Nicolas Cage) e, assim, não foram raras as gargalhadas da plateia e os aplausos em cena aberta. Um novo passo não apenas ao humor, mas ao Cinema. Torçamos por uma boa distribuição – o cineasta chegou a sugerir/incitar que façamos um “tweetaço”, pediando à Paris Filmes, que faz um ótimo trabalho de divulgação no país, que assuma da distribuição do filme.

Assim, outubro não poderia ter começado melhor: filmes e mais filmes, estreias, debates e, vez ou outra, esbarrando com um diretor ou ator. Correndo de um lado para o outro nessa grande cidade, uma boa chance para mim, como recente morador, conhecer ainda mais o Rio e me habituar com a vida carioca – e estou amando muito tudo isso. Em breve, mais Festival aqui no Meia Palavra – palavra de cinéfilo!