Lucimar Mutarelli é a esposa de Lourenço Mutarelli, um dos poucos prosadores da literatura brasileira contemporânea pelo qual eu tenho apreço. Foi com um misto de entusiasmo e desconfiança que descobri que também ela lançara-se à atividade literária. Entusiasmo pois, se a literatura e os quadrinhos de Lourenço me agradam o bastante, presumo que a convivência faz com que exista uma influência mútua. A desconfiança obedece a uma lógica um pouco mais pessimista: quiçá a publicação se devesse, primariamente, ao sobrenome.Nenhuma das duas opções, porém, concretizou-se plenamente em Entre o trem e a plataforma. Ou seja: nem Lucimar é um gênio literário paralelo ao de Mutarelli, nem é um daqueles casos de marketing nepotista. O livro é “honesto” o suficiente, tanto nas qualidades quanto nos defeitos.

Laura, a personagem central, é uma datilógrafa cujo psiquiatra orientou que escrevesse, como uma forma de terapia. É no metrô, indo para o trabalho, que ela preenche seus praticamente infinitos caderninhos: a mãe, sentindo-se culpada pela filha precisar recorrer a esse tipo de tratamento, faz com que seu estoque de cadernos nunca termine. Preenche os cadernos de maneira diferente. Os que vai mostrar para o médico estão cheios de engrandecedoras e otimistas frases de autoconhecimento, furtadas das telenovelas. O outro tipo, cadernos que só mostrará para o amor de sua vida – rapaz que escolheu no metrô pelo belo sorriso.

O enredo não tem grandes reviravoltas. Mas é justamente isso que importa: a falta de ação na vida de Laura, e a inação da própria personagem. A novela é um grande conto sobre a inércia humana – e sobre o sofrimento que ela causa. Contribui para isso o estilo seco, telegráfico e um tanto irônico de Lucimar (que me lembra um pouco do marido da autora, especialmente em O Natimorto). O maior trunfo, porém, é o tratamento bizarro que o mundo recebe. Mesmo se tratando de coisas completamente normais, como relações entre colegas de trabalho ou os desencontros dos passageiros de um metrô lotado, Lucimar transforma tudo em uma distopia.

Em alguns momentos, porém, isso parece um tanto quanto exagerado e dá um ar demasiado ingênuo ao livro. Não que isso seja necessariamente ruim, mas, pessoalmente, acho que quebra um tanto a atmosfera criada. Em alguns momentos parece que Lucimar está forçando a mão para que as coisas saiam como saíram – e que, se escrevesse de modo mais natural, as coisas seriam diferentes. Como eu disse, não é necessariamente ruim, mas às vezes incomoda.

Algo que me deixou intrigado foi a relação do livro com o filme Insolação, dirigido por Felipe Hirsch. Não vi o filme inteiro, apenas alguns trechos – e a impressão geral foi de que são duas coisas bastante diferentes. Preciso, é claro, assistir ao filme com o devido cuidado para poder ter uma opinião de verdade sobre isso, mas vale a menção aqui.

O livro é bastante curto, e dividido em uma grande quantidade de capítulos também muito curtos. Com isso, a leitura é bastante rápida – o que evita que a obra se torne cansativa.

Para uma primeira obra em prosa, acho que Lucimar se saiu bastante bem. Parece-me, aliás, ter sido relativamente mais feliz do que em suas obras dramatúrgicas. Conseguiu encontrar uma voz própria, sem, porém, distanciar-se do que Lourenço faz – e, inegavelmente, ambos influenciam-se mutuamente, se não por outra coisa, pela convivência.