Entre as muitas entrevistas da Flip deste ano, houve um momento em que o escritor espanhol Enrique Vila-Matas subiu ao palco, sozinho, para apresentar uma conferência. Leu três textos, o primeiro deles dedicado ao amigo italiano, e também escritor, Antonio Tabucchi. Para mim, uma das memórias mais marcantes do evento.
Por mais que tenha revirado o poderoso arquivo da Internet, encontrei pouco mais que pequenos resumos daquela leitura. Como algo destinado a conservar uma aura de irrepetibilidade – um dos nutrientes básicos da nostalgia – não se acham transcrições nem gravações completas. Há apenas um vídeo disponibilizado no canal da própria Flip, no qual, no entanto, a voz da intérprete cobre quase totalmente a de Vila-Matas. Mas é essencial ouvir Vila-Matas. Como me lembro, havia algo de imponente, algo de ominoso que se manifestava a cada vez que ele repetia as palavras “se está haciendo siempre más tarde”.
É difícil lembrar os detalhes daquele primeiro texto, mas é certo que Vila-Matas falava sobre a infância, sobre férias passadas em alguma estância turística e sobre a maneira como lá teria vindo a conhecer o garoto Tabucchi (soa inacreditável, mas suspendamos a desconfiança por enquanto). Enrique e Antonio se ocupariam como todas as crianças quando estão de férias (ao menos como crianças introspectivas fadadas ao gênio literário) até que uma das mães viesse chamá-los e avisasse: “se está haciendo siempre más tarde”.
Apesar de ter Tristano Morre na estante, e de achar o título interessante o suficiente para usá-lo como senha do meu wi-fi, a verdade é que não conhecia nada da obra de Tabucchi. Ao voltar da Flip, uma das primeiras coisas que descobri foi que as palavras de Vila-Matas ecoavam o título de um outro livro de Tabucchi: Si sta facendo sempre più tardi. Mas falo dele depois.
Tristano Morre é sobre um homem que, enquanto aguarda seus últimos dias passarem, preso à cama por uma doença grave, chama um escritor para compor suas lembranças. Tristano foi um soldado italiano na Segunda Guerra, condecorado por sua luta contra os nazistas. Contudo, o que ele deseja não é algo como uma memória de conquistas e vitórias, num último afã de alcançar a eternidade. Pelo contrário: chegando ao fim da vida, a aura de heroísmo lhe incomoda cada vez mais. O relato de Tristano nem sempre é coerente: ele embaralha nomes e identidades e entremeia muitas divagações entre sua história. Ao chegar ao fim de tudo, ele despreza os valores do século que nasce (o século XXI) e abraça a morte.
Acredito que Vila-Matas e Tabucchi têm muitas coisas em comum. Para citar uma delas, ambos parecem escrever como se não se voltassem para os leitores, mas para si próprios. Outra: ambos são escritores eruditos (um tanto mais raros hoje em dia), que recheiam seus livros de referências a outras obras. O próprio Tristano de Tabucchi deve seu nome, como o autor revelou em uma entrevista, a uma das Operette Morali de Giacomo Leopardi (quem pensou em Tristão e Isolda: fique uma rodada sem jogar). É um texto curtinho, chamado Dialogo di Tristano e di un amico, que está disponível no Wikisource. Nele, esse Tristano tataravô tenta justificar, de maneira bastante irônica, sua visão negativa da vida. Começa assim:
Amico
Li vosso livro. Melancólico como ao vosso gosto.
Tristano
Sim, ao meu gosto.
Amico
Melancólico, desconsolado, desesperado; vê-se que esta vida vos parece uma coisa muito terrível.
Tristano
Que posso vos dizer? Tinha fixa na mente esta loucura, que a vida humana fosse infeliz.
Ao longo do diálogo, Tristano critica a decadência da educação (exceto na Alemanha), a superficialidade dos meios de comunicação de massa e mesmo o desaparecimento do indivíduo frente à multidão, uma plataforma ainda bastante atual, depois de 200 anos. Ao final, ele despreza os valores do século que nasce (o século XIX) e diz que preferiria antes a morte que viver em tempos decadentes. Não por acaso, Leopardi é um daqueles escritores cuja lembrança vem imediatamente associada à alcunha de pessimista.
Curioso ver que, por coincidência ou Zeitgeist, Leopardi foi contemporâneo de outra célebre figura do hall da fama do pessimismo, o filósofo Schopenhauer. Ao que tudo indica, e por mais espantoso que pareça, o poeta italiano nunca chegou a ter contato com as obras de sua contraparte tedesca. Schopenhauer, sim, elogia Leopardi no volume 2 da sua obra máxima, O mundo como vontade e como representação, por sua riqueza formal e imaginativa, pela qual imbuiria todo o seu trabalho com a verdade da “vida como uma farsa trágica”. Assim o filósofo enxergava o nosso destino:
A vida do indivíduo, quando vista no seu todo e em geral, quando apenas seus traços mais significativos são enfatizados, é realmente uma tragédia; porém, percorrida em detalhes, possui o caráter de comédia, pois as labutas e vicissitudes do dia, os incômodos incessantes dos momentos, os desejos e temores da semana, os acidentes de cada hora, sempre produzidos por diatribes do acaso brincalhão, são puras cenas de comédia. ((Todas as citações de O mundo como vontade e como representação vem da tradução de Jair Barboza publicada pela editora Unesp.))
O que significa, em linguagem contemporânea, que a vida é como os filmes de Woody Allen (e com isso, em algum lugar do mundo, mais um Tristano morre). Mas, de fato, Schopenhauer valorizava a arte, a poesia, sobretudo a música, que seriam caminhos para encontrar uma “felicidade pura não precedida de sofrimento”.
Como havia dito antes, a ligação entre um livro e outro pode ser bastante estranha. Quando estava revendo O mundo como vontade… de dentro dele caiu uma folha de papel, em cuja primeira linha estava escrito: “parasite sex”. Tenho (felizmente) apenas um livro com temas do gênero, uma obra excelente de divulgação científica chamada A rainha de copas, em que o jornalista Matt Ridley compila várias descobertas recentes ligadas à evolução, à genética e ao sexo. Havia anotado também outras referências e, entre elas, havia uma a Tristan (agora, sim, o de Isolda).
Acontece que, conta Ridley, à luz de uma certa pesquisa, o mito nórdico poderia ser explicado pelo seguinte lema: “a mais bem-sucedida coisa que um homem ou uma mulher podem fazer é gerar um herdeiro legitimado de um homem rico” (pois isso aumentaria as chances de que seus genes fossem passados adiante). Entender-se-ia assim que, a princípio, o sucesso de Tristão estivera garantido, uma vez que deveria herdar de seu tio o reino da Cornualha, e que por isso não teria necessidade de Isolda. No entanto, a partir do momento em que ela se casa com o rei Marcos, barrando provavelmente o acesso de Tristão ao trono, este rapidamente volta a se interessar por ela – perdera, sim, a riqueza, mas poderia ainda garantir os herdeiros.
Não sou um defensor desse tipo de explicação “científica”; mesmo que tenha algo de verdadeiro, ela não deixa de ser bastante reducionista. Mas é verdade que são muitas as histórias em que a Rainha, a mais bem posicionada dentre todas as mulheres, está no foco das paixões. Felizmente para o rei Marcos, há naquele diálogo de Leopardi um conselho muito útil, que serve tanto aos cornos quanto aos infelizes:
Aos maridos, se desejam viver tranquilos, é necessário que julguem que suas mulheres sejam fiéis, a cada um a sua; mesmo quando metade do mundo sabe que a verdade é bem outra. A quem deseja ou deve viver em uma região, convém que a julgue uma das melhores da terra habitável; e assim o crê. Aos homens, universalmente, desejando viver, convém que julguem a vida bela e preciosa; e tal a creem; e se irritam contra quem pensa de outra maneira.
Esse conselho, Tristano, evidentemente, e também Leopardi, se pode supor, se consideram incapazes de ser seguido. Talvez, se o poeta pudesse ter mantido uma conversa com Schopenhauer, este lhe teria consolado, citando o Eclesiastes: “caro amigo, quem aumenta sua ciência, aumenta sua dor”. Já para as pessoas comuns do séc. XXI, o melhor talvez seja olhar a vida por uma janela bem delimitada, dentro de cujas dimensões, como disse o filósofo alemão, a vida pareça uma comédia.
A amizade de Tabucchi e Vila-Matas por outro lado foi bem real, e fragmentos dela ficaram conservados em Está ficando tarde demais (como foi publicado em português). O livro reúne 20 cartas fictícias, escritas por personagens diferentes, que têm em comum (exceto a última) um certo arrependimento (ou, ao menos, certa melancolia) quanto ao passado. Falam, em geral, de alguma decisão que teve de ser tomada e brincam com as possibilidades de um desfecho diverso. Mas uma dessas cartas em especial não parece fazer muito sentido à primeira vista, e foge da estrutura geral “homem lembra relação com mulher”. Só ao final do livro Tabucchi revela que essa carta pode ser lida como uma homenagem a Vila-Matas. De fato, lemos lá:
(…) não, não é esta infância, vá embora infância que se passa por verdadeira só porque é minha infância de cartório, sabe, a vida não é de cartório, ela está sempre e de todo modo em outro lugar, a verdadeira infância é aquela que se escolhe quando grande, ou quando velho, e toma então pela mão aquela sua falsa infância veríssima, e ela é uma garotinha com dois tamanquinhos de madeira que saltita sobre a areia, e à sua frente há uma imensidade de mar azul, e é verão, e a garotinha saltita e diz: assim fazem os fantoches, e depois continua: giroflê, giroflá, porque estamos numa brincadeira, quer brincar comigo, Enrique?
Como a homenagem que Vila-Matas leu na Flip, esta também fala da infância e de crianças que se encontram fortuitamente. Tomando-a como filtro, podemos entender que, mesmo que Tabucchi e Vila-Matas nunca tenham de fato se encontrado quando pequenos, isso em nada alteraria a relação entre eles – a verdadeira infância é aquela que se escolhe.
Fico feliz em ver como dois autores que pareciam escrever apenas para si próprios puderam se encontrar em um momento de correspondência. Porque ainda que Tabucchi tenha falecido este ano, e portanto não pudesse estar entre as quinhentas pessoas do auditório da Flip, tenho certeza agora que foi a ele, e apenas a ele, que se dirigiu Vila-Matas.
Gigio, o ingresso para essa mesa do Le-Clézio-que-não-deu-as-caras-então-vamos-ocupar-com-o-Vila-Matas foi um dos melhores investimentos que fiz. Tê-lo concedido a você para, meses depois, ler um post como esses valeu INFINITAMENTE mais do que a devolução da grana.
Pequenos comentários enquanto releio o texto:
1. Intérpretes cobrindo a voz dos caras: Uó.
2. Torça pra seus vizinhos sem wifi não serem fãs assíduos da tua coluna.
3. O que significa ficar um rodada sem jogar? Não poder ler a próxima coluna antes de ser publicada, é isso? (=P)
4. A citação do Schoppenhauer é linda demais.
5. Melinda & Melinda: o segundo do Allen que vi, o primeiro mais parecido com o que ele normalmente faz. Eu gostei.
6. O papelzinho que caiu = http://24.media.tumblr.com/tumblr_mbbseqw5PD1rp9vkuo1_250.gif
7. Acho que vou atrás do “Está ficando tarde demais”. Conferi que tem na biblioteca pública. O parágrafo que acompanha a citação do título lembrou-me muito de um conto que ando relutando em escrever e que tem muito a ver com o último dia de FLIP.
É isso. Abraço, meu caro. Muito legal o texto e valeu pelas dicas.
Muito obrigado por todos os comentários, Tuca. =D
1. O pior é que intérpretes sempre têm uma entonação do tipo “quanto tempo falta para eu ir para a casa?”
2. Iria até mudar a senha, mas pensando bem, meus vizinhos que lerem minha coluna estão convidados a se servirem à vontade do wi-fi.
3. Uma rodada sem jogar equivale a “calma, não desça antes do ponto”. :~P
4. Secret unlocked: dentro de “O mundo como vontade e representação” há citações ideais para todos os assuntos. Quase todos: falta algum sobre amizade.
5. Não conheço Melinda & Melinda, vou procurar ver. O que tinha mais em mente era “Whatever Works”.
6. True story.
7. “Está ficando tarde demais” é um livro peculiar, que não tem história, não é fácil, daqueles que você vai aprendendo a gostar aos poucos. As primeiras cartas, especialmente, são mais herméticas, não se assuste. Mas tomara que goste. ^_^
Abraço!
Eu adoro o título da sua coluna (putz! tente ler isso LITERALMENTE. WTF?), mas sempre tenho de ler mais de uma vez para conseguir dizer certo. É verdade. Da primeira vez que leio, sempre falo “Itinerário de Pasárgada”. E, não, nem sou fã inveterada do Bandeira.
É meio impossível se dizer apaixonada por Machado de Assis e não se interessar por Schopenhauer, né? E o mais engraçado da coisa toda é que eu me divirto com o pessimismo do Schopenhauer. Ele não estava errado em definir a vida como um “completo sofrimento”. Ele mesmo reconheceu que há tréguas, proporcionadas pela arte e coisa e tal, mas há. Mas é certo que se alguém, em um dia no qual estiver muito deprê, decidir ler Schopz, as consequências podem ser drásticas. É difícil imaginar que uma pessoa com forte tendência suicida permaneça viva depois de se dar conta de que, para Schopz, a razão tem objetivo, a vontade MUDA. E se a vontade não tem objetivo, ela é caótica. Ora, em um mundo caótico, sem objetivo, é claro que as coisas ruins vão acontecer. Se o mundo tivesse uma determinação, e tivesse um objetivo posto pela razão, a razão poderia programar as coisas, para que as coisas todas fossem boas, mas como não é, você precisa aceitar o fato de que o percurso do mundo não é necessariamente bom.
Por algum motivo aleatório, minha mente inquieta acabou de se lembrar de que o Franzen falou algo como “as pessoas mais engraçadas que conheci eram deprimidas”, na Flip. Mas, olha, sou pessimista, sim, mas também sou otimista. Não consigo equilibrar a coisa toda, não. Há momentos em que sou a maior ave de mau agouro, e há outros em que sou muito Pollyanna. Mas eu nem diria que sou infeliz. Eu diria, com Mia Couto, que “sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença.”
Não preciso dizer que pensei no Tristão da Isolda antes da hora, né? Também não preciso dizer que achei sublime a sua leitura para a palestra do Villa Matas, né? Talvez eu devesse me demorar um pouco mais neste comentário, mas “está ficando tarde demais” e tenho de ir para o estágio.
Até a próxima estação, Gigio.
*Vila
Valentina! Que bem-vinda sua presença! 😀
Pois é, acho que todos os pessimistas que acompanham o Schopenhauer acabam sendo levados a um lugar além do pessimismo. Às vezes, mais eficiente que ouvir “tudo vai ficar bem” é “não tem jeito, para de reclamar”. Ele tem essa alcunha de pessimista, mas na verdade suas respostas são calmantes em relação a muitas coisas, como a questão do mal, por exemplo. A mim parece mesmo melhor acreditar que coisas ruins vão acontecer naturalmente do que qualquer outra alternativa…
Outra coisa que ele sugeria, e que algumas pesquisas modernas (e o senso comum, né) reforçam, é que cada pessoa já nasce com sua medida de felicidade/infelicidade. Tirando condições extremas, sempre há quem reclame tendo todos os confortos e quem viva dando risada mesmo na pindaíba. Mas comecei querendo concordar com o Mia Couto (é preciso se esforçar para ser infeliz) e vejo que concordei com o Franzen (essa coisa bem americana de cada um tem a sua proporção de neurotransmissores, a depressão como uma condição física). Deve ter ficado cedo demais para neurotransmissores…
Abraço!