Em que pese as profundas mudanças pelas quais passou a humanidade ao longo de sua trajetória histórica, as religiões continuam a influenciar o pensamento e as atitudes das pessoas em seus aspectos mais cotidianos. Talvez não necessariamente religião no sentido de crença instituída, mas de uma fé em algo maior, em algo que existe para além da materialidade imediata do mundo, precisamente o que Mircea Eliade chamou de “sagrado” no livro O sagrado e o profano.
O “sagrado” existe, como escreveu Eliade, em oposição ao profano. Ele se constitui na concepção de um mundo trans-humano, comumente de origem divina, que diz respeito à existência de uma transcendência que extrapola os quadros da realidade imediatamente visível e sensível. Esse “sagrado” se revela no mundo através de determinados sinais e elementos, os quais são chamados hierofanias. Em O sagrado e o profano, Eliade se propõe a estudar a historicidade das religiões através das hierofanias, isto é, através das manifestações e expressões do sagrado em diversos quadros sócio-históricos e culturais.
Como o autor diz, “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história.” (p. 20), ou seja, o sagrado e o profano constituem dois modos de vida e duas concepções acerca da “natureza” do mundo e da existência, sendo, portanto, complexos arranjos sócio-culturais, que envolvem não só crenças e rituais mas todo um sistema de moral, ética, códigos, símbolos, filosofia e organização social.
O objetivo de O sagrado e o profano, portanto, é entender “(…) de que maneira o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de tempo possível num universo sagrado e, consequentemente, como se apresenta sua experiência total de vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado.” (p. 19)
A existência do homo religiosus, como o chama Mircea Eliade, está ligada principalmente aos povos antigos, para os quais os mitos, os rituais, os símbolos, os deuses e seus atos eram realidades presentes, concorrendo constantemente para a manutenção ou destruição do mundo como ele existia. Para esses povos, o sagrado não é uma crença longínqua e fabular, mas a própria realidade, que retorna o tempo todo através dos rituais e celebrações, constituindo, por conseguinte, uma dimensão ontológica essencial das sociedades antigas.
Essas asserções estão baseadas em inúmeros exemplos, que ele vai apontando e discutindo ao longo do livro. A ocupação de um território, por exemplo, é analisado por Eliade através das práticas de alguns povos primitivos, nas quais a ritualização da ocupação consagra o território, estabelecendo uma rotura na homogeneidade do espaço e tornando aquela terra em mais do que sua extensão física, fazendo-a um Cosmos – ou imago-mundi, “habitação sagrada” – dentro do caos da natureza profana de nosso mundo. A presença de totens e estelas de pedra com inscrições frequentemente indicam a consagração do território para sua ocupação.
Os mitos também possuem papel importante na constituição das práticas e do cotidiano do homem religioso: eles oferecem “modelos exemplares” para diversos atos, trabalhos e rituais das sociedades antigas. O mito do ato criador primordial, o mito cosmogônico, por exemplo, é constantemente reatualizado, servindo de modelo para a construção de uma casa ou para o estabelecimento em uma determinada região. O mito da fertilidade feminina e da terra orienta a gestação e o nascimento do bebê, que ocorre, em algumas culturas, com a criança entrando em contato com a terra, pelos laços mitológicos existentes entre o papel de mãe da mulher e a terra mater, que nutre seus filhos com sua fertilidade.
Todo esse vasto conjunto de práticas e crenças, unificadas na experiência do sagrado – essa “modalidade de ser no mundo” – estão em contraposição à existência profana, a situação contemporânea, que escolheu viver num mundo dessacralizado onde a crença na existência de algo trans-humano, divino e maior do que o próprio homem-indivíduo não encontra-se mais inscrito nas quadros sociais e históricos. Apesar disso, Eliade procura apontar exemplos de como resquícios do homem religioso estão presentes nas mais banais situações, como quando bate-se na madeira para isolar a má sorte ou quando se bate na boca ao dizer algo de ruim, como se a verbalização fosse a consolidação do mau agouro.
O sagrado e o profano não é um livro escrito para especialistas em história das religiões ou para pessoas religiosas somente. Se trata de um estudo muito interessante para todos os tipos de leitores, para que compreendam como, independente de religiões ou da dessacralização do mundo contemporâneo, a experiência do sagrado continua a se constituir dimensão ontológica da existência social do homem.
Um livro que nos ajuda bastante a se comportar melhor em lugar santo.
A notícia passada por quem leu o livro de Eliade nada acrescentou paara mim a não ser o menosprezo por assunto que pretende inculcar o respeito pela vida religiosa e sua ligação com o Criador. Bem próprio a um filósofo agnóstico. Em meu livro “Cartago deve ser destruída”, do ponto de vista da religião católica, trato a dupla Sagrado/Profano como marco diferencial entre o clero(dono absoluto do sagrado) e o leigo ( relegado a não ultrapassar as coisas temporais) Dependendo do ponto de vista, parece mais lógico, admitir Deus como criador de tudo, sendo, ao final, tudo só sagrado. Proposta: fim da dupla. Carreira solo para o Sagrado..
Achei interessante o pensamento de Elaide pretendo ler o livro para aprofundar mais sobre ela.