Um boato é uma história que parece não ter fundamento ou é incrível demais para ser verdade – quase um primo feio do mito e um meio irmão da fofoca. Geralmente começa quando um fato é passado para frente, “quem conta um conto aumenta um ponto”, e começa a ficar mais robusto mas se tornar inverossímil. Em O Jantar Errado, novo livro de Ismail Kadaré lançado no Brasil, os boatos permeiam Girokastra, uma pequena cidade ao sul da Albânia, durante um misterioso jantar na primeira noite em que é ocupada pelos nazistas e que segue envolto em segredos após longos anos.

Girokastra é uma típica cidade pequena com diversas lendas milenares, que se resumem a histórias de ninar e às contemporâneas, como a disputa tácita entre os doutores Gurameto Grande e Gurameto Pequeno. Quando é informada que a Itália cortou relações com a Alemanha de Hitler, a cidade fica dividida sobre o futuro da nação albanesa; as novidades que correm os quatro ventos vão desde a unificação com Kosovo até a expulsão dos gregos do país. Todas as novidades correm no boca a boca, apesar de muitos afirmarem que as notícias vêm da capital e que está tudo nos jornais, nada de fato parece acontecer – pelo menos não de imediato – e a síndrome de cidade pequena querendo ser o centro de um conflito, de uma mudança, aparecem. Através desse telefone sem fio, com pistas inócuas, o fortalecimento de Gurameto Grande, por ser quase um teuto-albânes, e o enfraquecimento de Gurameto Pequeno, formado na Itália, é evidenciado na visão dos moradores.

Tudo encaminha tal qual imaginado pelos cidadãos quando o exército alemão invade a cidade e o seu comandante, coronel Fritz von Schwabe, é recebido num jantar na casa de Gurameto Grande. O burburinho acerca do assunto se alastra e toma forma de lendas. Não há nenhum vestígio, nem das circunstâncias, sobre a relação entre o médico e o coronel, teoricamente apenas a Alemanha os liga. O que supostamente acontece dentro da casa torna-se o assunto nas ruas. O incessante gramofone cria uma aura de suspense, as músicas sendo interpretadas de diversos modos. O falatório recheado de falácias tenta desmascarar o doutor – um verdadeiro traidor – enquanto outros elevam seu status a salvador da cidade.

 

Aquilo que tombava junto com o crepúsculo ainda não tinha um nome. Eventualmente poderia ser chamado de “silêncio”, embora fosse mais profundo, e tão diferente deste último como o barulho.

 

Ismail Kadaré coloca em cheque as opiniões de seus próprios personagens coadjuvantes, ou melhor, as vozes dos cidadãos de Girokastra, ao relembrar fábulas locais que se assemelham aos relatos dos moradores. O autor caçoa de como muitos tornam-se testemunhas oculares sem estar nos locais onde os fatos discorrem – efeito muito bem empregado com os diálogos intercalados no meio da narrativa e pela divisão de grupos: os que concordam, os que discordam, os que não discordam nem concordam, etc. Mas em nenhum momento há a certeza se o que está sendo contado de fora da casa é um fato.

Quanto ao jantar em si também é difícil acreditar em algo, há coincidências demais – aquele fato de ser tão inacreditável que realmente fica inacreditável – como o passado do doutor e do coronel, a forma como um se dirige ao outro e a ligação entre eles. E por fim, o desfecho um tanto quanto inusitado: a libertação dos reféns pelos alemães, incluindo judeus. Essas dúvidas indeléveis surgem como trunfo na narrativa, existem pistas em inúmeras passagens e diálogos, por vezes ofuscados por situações absurdas inventadas pelos cidadãos.

O pano de fundo político da Albânia dos anos de 1950 parece não puxar O Jantar Errado para o patamar do crível, mas do mais inacreditável. A iminente busca pela verdade sobre o jantar de dez anos antes se mistura com o chamado “Complô das Batas Brancas” –  campanha instaurada por Stálin para caçar médicos judeus acusados de conspirar contra dirigentes do regime soviético – e com as investigações do serviço secreto comunista. Os interrogatórios do Dr. Gurameto Grande passam da tirania aos soldados despreparados e aos vilões de histórias de super-herói, quase criando um faz-de-conta quando misturado às antigas histórias da cidade.

O estilo da narrativa, agregado ao tom, desperta o interesse do leitor nos textos de Kadaré, no limiar entre o real e a fábula, levando-o a crer que os fatos apresentados podem tanto ter acontecido como podem ser, no fim, apenas folclore.