Seu rosto amanhã [Vol.1] Febre e Lança, lançado em 2002 na Espanha, é o primeiro volume da trilogia concebida por Javier Marías, que conta ainda com Dança e Sonho (Vol.2) e Veneno, sombra e adeus (Vol.3). Todos tiveram tradução no Brasil de Eduardo Brandão e lançados pela Companhia das Letras em 2003, 2008 e 2010.

No enredo, um ex-professor da Universidade de Oxford se encontra no meio de investigações sigilosas do Serviço Secreto Britânico e de um grupo de espiões que querem usar suas habilidades únicas de percepção. “Ninguém nunca deveria conta nada, nem fornecer dados nem veicular histórias nem fazer com que as pessoas recordem seres que nunca existiram nem pisaram na terra ou cruzaram o mundo, o que, sim, passaram mas já estavam meio a salvo no retorcido e inseguro esquecimento.”

É irônico o personagem principal, Jacques Deza, abrir a história dessa forma, para em seguida revelar os motivos de sua mudança para Londres em longos pensamentos e suposições. Após a separação da mulher Luisa, ele parte para a cidade inglesa e começa a trabalhar na rádio BBC, passando as noites assistindo seu vizinho dançar no silêncio, muitas vezes sozinho, e à espera de telefonemas para falar com os filhos. Certo dia recebe um convite para jantar na casa de seu velho conhecido de Oxford, sir Peter Wheeler, um falso velhinho que nunca joga conversa fora sem ter necessidade de captar algo nas entrelinhas – como grande parte dos personagens concebidos por Javier Marías que observam, pensam e vomitam sentenças hipotéticas e teoremas ao leitor -, e que sem mais nem menos lança informações sobre um dos convidados, Bertram Tupra. Instigado por Wheeler, Deza passa a tentar a qualquer custo, durante o evento, aproximar-se e descobrir as minúcias desse misterioso convidado.

Dotado de um talento de intérprete único – como outros personagens de Marías, que conhecem bem as palavras – e observador arguto de trejeitos, falas e expressões corporais, Jacques Deza absorve em poucos apertos de mão e sotaques as intenções de uma pessoa. Durante o jantar, ele tenta se esquivar de Rafita de La Garza – um irritante e mulherengo conterrâneo que não gosta de falar inglês e exige a ajuda de Jacques para traduzir suas investidas – para conversar com o alvo de sua inquietação. Tupra é um clássico modelo de homem cativante e simpático, mas a relação com sua nova namorada (ou seria sua esposa a longo prazo?) soa extremamente artificial e apático, o que não passa despercebido por Deza. A partir do estudo relâmpago nas poucas palavras que trocam – incluindo um convite de trabalho sem especificações -, Deza passa a desconfiar das verdadeiras intenções de Wheeler.

O dom de Deza vai além das descrições: ele consegue prever como as pessoas serão no dia seguinte, como elas agirão e quais suas reais intenções. Os diálogos travados pelos dois parecem uma espécie de dinâmica de grupo, uma entrevista com o RH, em que todas as suas palavras são analisadas, ponto a ponto, e as perguntas soam jogadas ao acaso, totalmente falsas e mecânicas.

Wheeler, muito mais sagaz, reconhece em Deza um discípulo de igual grandeza para uma missão especial. Toda a aptidão do protagonista interessa a Tupra e Wheeler por ser extremamente útil no serviço de espionagem, em interrogatórios, traduções e interpretações. A partir disso, inúmeras revelações tomam conta da história, como o passado de Wheeler e do pai de Deza (tons autobiográficos de Marías estão impregnados nessas passagens). O apreço pelos detalhes atirados em momentos esparsos expandem a paranoia do protagonista, e o campo das ideias e da realidade se chocam. O sentimento de desconfiança casa com outra passagem da abertura do romance, quando Deza analisa o “direito de permanecer calado” como uma armadilha. Se nem as palavras podem salvar, quem dirá o silêncio: ouvir ou falar é perigoso.

O quebra-cabeça verborrágico desse exemplar mescla humor e densidade, e nada é dito por acaso mesmo que não seja dito, afinal, parte são suposições adentrando a narrativa e rasgando-a pela metade, ou em picadinhos, exigindo do leitor atenção redobrada . As observações do narrador migram dos simples gestos dos outros personagens para como devem ser ditas determinadas frases do espanhol para o inglês, uma brincadeira linguística aguçada e um dos pontos mais interessantes dessa obra. Isso é evidente, por exemplo, nos diversos nomes que Jacques é chamado, como Jaime, Jacobo e até mesmo Jack, todas as formas de um mesmo nome. Ou o recorrente vício de Marías de enumerar sinônimos atrás sinônimos, brincando com as voltas que uma mente pode fazer até chegar às suposições mais próximas da realidade.

Como uma primeira parte, Seu rosto amanhã (Vol.1) Febre e Lança tem um ritmo viciante, deixando ganchos para vários acontecimentos inacabados ou lançados em uma órbita abstrata – será uma verdade absoluta ou simples especulação do narrador? É um thriller sobre desconfiança, traição e paranoia, um delírio febril mas lúcido, abarrotado de ironia da primeira à última linha.