Aparentemente Quincas Borba (1891), obra da chamada “fase realista” de Machado de Assis, é um livro bem conhecido por várias pessoas, porém talvez nem todos tenham lido. Dentre os clássicos machadianos, tenho a impressão de que Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899) sejam mais lidos e reconhecidos. De seu enredo deve se lembrar mais da morte do personagem homônimo, Quincas Borba, e da filosofia por ele criada, o Humanitismo. O problema é que esses elementos ocupam somente o início dos acontecimentos do romance, dominado na verdade por outro personagem, Pedro Rubião de Alvarenga, ou simplesmente Rubião. O fato é que se trata de uma obra muito referenciada, mas que talvez não seja bem entendida em sua complexidade.

Como disse, realmente temos Quincas Borba, personagem de Memórias póstumas…, já no início do romance, porém ele logo morre e cede seu espaço totalmente a Rubião, amigo que cuida dele na doença e no leito de morte. Antes de seu falecimento, nos inteiramos do convívio dos amigos na casa do doente, em Barbacena, Minas Gerais. Seu esforço no fim da vida é repassar o que pode de sua filosofia para Rubião, que, apesar de ser professor, não entende bem o raciocínio de seu mestre. Como discípulo, Rubião atua bem, o que lhe rende o status de herdeiro universal de seu rico amigo com a condição de que tome para seus cuidados o cão cujo nome é o mesmo do dono: Quincas Borba.

Após o aceite, seguimos para o real drama da obra: Rubião se dirige para a Corte, como o Rio de Janeiro na época era chamada, e conhece no trem Cristiano Palha e Sofia, que voltam de um passeio. O casal se tornará sua principal fonte de amizade e de tormentos morais ao longo do romance. Apesar de todos parecerem bem-intencionados, após a declaração de amor dada por Rubião a Sofia, a amizade se desestabiliza e os verdadeiros desejos de ambos os lados surgem de modo a levar o protagonista à loucura. Nota-se que dos dois membros do casal, a personagem mais bem retratada é justamente Sofia, o alvo das paixões. Isso faria com que o público que recebeu a obra na época cogitasse que Machado fosse escrever um terceiro volume em que ela fosse a protagonista. Em Dom Casmurro, não temos Sofia, mas sim Capitu, que pode ser vista como uma espécie de derivação da primeira.

Em Quincas Borba, também somos ligeiramente introduzidos ao Humanitismo. A famosa citação do livro (“Ao vencedor, as batatas”) vem da ilustração dada por Quincas para sua filosofia, que afirma que a procura pela igualdade é uma mentira. A fim de comprovar essa afirmação, ele diz que não é possível que dois grupos de pessoas em condições primitivas, na busca pela sobrevivência, se mantenham de um mesmo campo de batatas, pois não haveria alimento para todos; somente um grupo deverá se alimentar e seguir adiante ignorando os outros. Apesar desse pensamento aparecer como absurdo no livro, não deixa de ter relação com a ascensão da economia capitalista no Brasil. Toda a problemática social posta pelo enriquecimento repentino de Rubião e sua relação com a burguesia carioca e com o próprio dinheiro não está tão distante assim do Humanitismo. Machado, sempre irônico e pessimista com seus personagens, certamente gostaria que o leitor percebesse essas possíveis ligações.

Na evolução literária de Machado, Quincas Borba representa a consolidação de sua busca por novas formas narrativas que se distanciam do Romantismo, do romance burguês sob os moldes europeus. Mesmo nas obras do primeiro Machado, como A mão e a luva, já encontramos pequenas “transgressões” em relação à fórmula seguida por José de Alencar, por exemplo, porém só depois de Memórias póstumas parece que o autor se decidiu por explorar o romance de outras maneiras. Sempre se diz que suas referências eram outras que os românticos brasileiros desconheciam, sendo Tristam Shandy, de Laurence Sterne, o exemplo mais comum desses seus conhecimentos distintos.

Como se nota, Quincas Borba é um romance que merece a leitura do público brasileiro e também estrangeiro, especialmente em um momento em que Machado de Assis já é consagrado pela crítica internacional como um dos maiores escritores do século XIX. Em sua última edição, lançada pela Penguin-Companhia das Letras, além da ótima introdução de John Gledson, estudioso inglês de Machado, temos também notas elaboradas especialmente para o leitor novato para que não se sinta alheio ao contexto histórico e cultural da obra.