Foi em uma tarde do ano 1943 que David Maolouf ouviu pela primeira vez a história sobre a Guerra de Troia. O autor, ainda criança, escutou a narrativa que foi contada por sua professora para distrair ele e outros alunos, porque uma chuva impossibilitara a diversão deles no parque durante o recreio. Desde aquele momento, ele criou uma identificação com a obra. O autor conseguia perceber uma semelhança entre aquilo que os Heróis gregos e troianos viveram com a sua realidade, isso porque, naquela época, ele vivia em Brisbane, que se tornou sede das forças aliadas do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso se tornou fundamental para a sua apropriação da Ilíada e, assim, para que recriasse alguns dos momentos dessa obra em seu livro intitulado O Coração dos Heróis.
No romance, somos apresentados a um momento delicado da Guerra, em que os troianos já estão em decadência e a vitória dos gregos parece ser apenas uma questão de tempo. No entanto, a infelicidade paira de ambos os lados: Pátroclo, grande amigo do Herói grego Aquiles, fora morto por Heitor. Em seguida, Aquiles e Heitor se enfrentam no campo de batalha e, dessa vez, Heitor perde a batalha e morre. Debilitados com mais essa perda, os troianos ainda têm que assistir Aquiles arrastar o corpo de Heitor com cavalos por entre as redondezas das muralhas de Troia.
Aquiles sente seu coração inquieto pela perda do seu grande amigo. Ele arrasta o cadáver de Heitor para tentar, em vão, saciar a dor que a perda de Pátroclo lhe causa. Como uma brincadeira de mau gosto dos Deuses, o corpo de Heitor permanece sereno, intacto e sem sinais de putrefação durante todo o processo. Enquanto isso, em Tróia, Príamo assiste o declínio de seu povo e a inquietação de não conseguir recuperar o cadáver de seu filho. Sua mulher, Hécuba, chora pela perda de mais um filho nos campos de guerra.
A situação não poderia ser pior até que, em certa noite, Príamo recebe a desafiadora visão da deusa Íris, que lhe propõe o acaso. Nessa situação, o acaso seria uma fenda entre o destino para que as coisas possam ser mudadas de forma inesperada. Acompanhando essa visão, Príamo sonha consigo vestido sem fardos reais, em uma carroça simples e carregada de tesouros a serem oferecidos para Aquiles em troca do cadáver de Heitor. Príamo deveria se ajoelhar, não como um rei, mas apenas como um mortal, e implorar pela concessão de Aquiles. No dia seguinte, Príamo decide colocar a sua visão em prática, mesmo parecendo absurdo diante dos perigos que a travessia representava, além do fato de ter que ficar diante de Aquiles sem proteção, podendo ser simplesmente morto.
Assim se inicia a jornada de Príamo e o seu carroceiro, Somax, rebatizado de Iadeus para aquela missão. Durante a viagem, esses dois personagens se aproximam muito, tornando-se o grande foco da narrativa. Príamo aprende alguns detalhes da vida que o fardo de ser rei não permitia-lhe enxergar. Somax, por outro lado, mostra que tem muito mais vivência e esperteza do que se imaginava.
O Coração dos Heróis narra muito mais do que as viagens e batalhas da Guerra de Troia, os sentimentos de cada um de seus envolvidos. Íris, ao propor o acaso, dá a sensação de que os personagens podem mudar seus destinos e realizar suas vontades, e não somente aquilo que os Deuses decidem. Mas será isso mesmo possível? Creio que não. Íris apareceu, na verdade, como elemento manipulador para que Príamo tomasse essa atitude. Somente com uma visão ele acreditaria que aquela absurda viagem faria sentido. No mais, o fato do cadáver de Heitor não entrar em decomposição, além da aparição de Hermes, que guia o caminho de Príamo e Somax, apenas comprovam a vontade dos Deuses. Mas isso é por conta do leitor: aqueles que preferirem acreditar que a sorte foi lançada e que qualquer coisa poderia acontecer a Príamo e Somax, vão encontrar elementos que defendam essa hipótese.
Com tudo isso, O Coração dos Heróis se torna uma narrativa sensível e reflexiva sobre a vida. David Malouf faz uma nova abordagem para a Ilíada, apresentando novos focos e sentimentos dos Heróis. Somax, por exemplo, passa a ser uma importante figura para a história. É ele quem desperta em Príamo alguns pensamentos sobre a família, batalhas e ser pai. De outro lado, Aquiles e Pátroclo são mostrados como grandes amigos e confidentes de vida, o que é muitas vezes omitido ou deixado de lado por outras obras de mesma proposta. Com certeza, é um livro que vale a pena ser lido por todos aqueles que interessam pelo tema.
Título: O Coração dos Heróis
Páginas: 254
Tradução: Paulo Polzonoff
Preço: R$39,90
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