Eu costumo gostar bastante de literatura infantil, infantojuvenil e juvenil. Bastante. Olhando rapidamente a lista do meu Skoob, 35 dos 134 livros lidos até agora em 2012 se encaixariam muito bem em uma das três categorias. As razões para ler tais obras são as mais variadas: diversão, análise do cuidado editorial e dos projetos gráficos, apreciação da linguagem, observação dos diferentes tipos de interpretação possíveis (dependendo da sua faixa etária e sua vivência), vontade de ver como os mais jovens estão entrando no mundo leitor… É o primeiro dia de aula… sempre!, de R. L. Stine, prometia uma narrativa surrealista, meio como o filme Feitiço do tempo, em que o personagem interpretado por Bill Murray vivencia o mesmo dia novamente, ao acordar. Há um nome para esse tipo de situação ficcional, mais comum do que se imagina (basta conferir na Wikipedia: nela há uma lista não exaustiva de filmes, seriados e livros que se utilizaram do expediente). O nome é time loop, aliás (ou “laço no tempo”, em bom português). Eu costumo gostar bastante de histórias com time loop. Finalmente, há toda a questão do protagonista se chamar Artie, apelido para Arthur: mais alguns pontos de lambuja em favor do livro, conforme informado anteriormente.

Ou seja: não foi por falta de boa vontade que achei o livro TÃO ruim.A história é meio simples: Artie terá um dia daqueles. Já acorda caindo da cama, no seu primeiro dia de aula em uma escola nova, que será seguido de uma consulta ao dentista. Um dia promissor, hein? Desde o começo, tudo dá errado; cada pequena ação resulta em um pequeno desastre. O primeiro dos “primeiros dias” parece seguir um roteiro de pesadelo, tipo aqueles em que a pessoa se descobre apenas de cueca no meio de uma multidão ou em que se tenta controlar um carro desgovernado, em uma ladeira, mesmo sem saber dirigir ou conseguir alcançar os pedais do acelerador e do freio. Os eventos que se sucedem, destacados por parágrafos-de-uma-frase-só, parecem visar exclusivamente que o leitor compreenda de imediato o que ocorre a partir da página 78: o dia de Artie está se repetindo e, pelo jeito, se repetirá todo dia, quando ele acordar.

Não há espaço para sutileza: cabelo melecado com calda de panquecas, calças molhadas pela lama de uma poça (parecendo, claro, que ele fez xixi), acidentes dos mais diversos (ele machuca valentões – que vão querer se vingar, obviamente – e perde o escorpião da turma) e sungas tiradas da mochila quando se quer alcançar um caderno (ok, isso deve fazer sentido pela atmosfera de pesadelo que o escritor quis passar, mas ainda assim fico pensando: como será que alguém confunde um caderno com uma sunga, mesmo sem ver o interior da mochila?). Não entendo muito bem a razão da falta de um maior espaço para o gradativo reconhecimento do que está acontecendo. Será que o título, a quarta capa e a orelha já não são explícitos o suficiente para o leitor – de forma que pelo menos o personagem tenha o direito de demorar um pouquinho para entender que o dia está se repetindo?

Às vezes, quando você está lendo um livro para crianças, adolescentes ou “jovens adultos” e não está gostando, é necessário dar um passo para trás e se lembrar: “Ei, eu não sou o público alvo desse livro!”. Isso é bem simples, aliás, e muita gente age consistentemente nesse sentido: “Ah, isso aqui é meio ridículo, mas é presente para uma criança, né? Então, tá tudo bem…”. Tentando cogitar qual seria o público alvo de É o primeiro dia de aula… sempre!, consegui pensar em duas alternativas de público.

A primeira seria composta por crianças que estão quase terminando o processo de alfabetização e que tentam acompanhar a leitura com os pais, na cama, antes de dormir. É uma alternativa razoável até, que ajuda a explicar um pouco os parágrafos de fôlego curto, curtíssimo. Nesse sentido, o livro poderia fornecer momentos interessantes de ligação entre pais e filhos: tá valendo. A outra diria que o público alvo é de adolescentes de onze anos do sexo masculino, que não costumam ler muito e que querem pelo menos algo que lhes seja divertido. Tanto melhor se eles forem do tipo que se matam de rir com programas da Nickelodeon tais como “Kenan & Kel” ou “Drake & Josh”. Porque é bem esse o tipo de humor bobão usado no livro: suficientemente divertido para muitos; meramente suportável para outros, isso quando conseguem “desligar o cérebro” ou estão com preguiça demais para pegar o controle remoto. Mas, ei, pelo menos eles conseguem perceber que um livro pode ser tão divertido quanto um seriado de televisão e perdem o preconceito com a mídia escrita; daí para tentarem ler outros livros é um pulo.

Se literatura fosse algo que levasse em consideração tão somente o público alvo – e, no caso, o público alvo fosse realmente um dos dois citados acima – não haveria o que criticar. Contudo, não posso deixar de apontar a insatisfação de um leitor que curte literatura infantojuvenil, mesmo já tendo barba na cara. Mesmo em minhas tentativas de pensar como seria se eu tivesse lido esse livro aos 11 ou 7 anos (ou seja, sem fazer considerações sobre todas as crianças do mundo, mas apenas a respeito do tipo de criança que fui), não consigo pensar em uma forma de lê-lo que dispensasse revirar os olhos a cada parágrafo bobo – que são muitos, especialmente devido à milenar técnica do parágrafo-de-uma-frase-só.

Eu me virei e vi uma garota com uma blusa amarela brilhante e uma saia marrom curtinha.

(Sim, isso é uma frase-parágrafo. Foi a primeira linha que um amigo leu, ao folhear um exemplar da obra numa livraria, o que o fez entender imediatamente minhas considerações a respeito do livro.)

O tipo de humor é muito limitado e a perda da chance de desenvolver uma narrativa com “laço no tempo” de forma menos tatibitate é quase um insulto à inteligência do leitor. Há livros e livros. Há os que aos poucos nos dão pistas a respeito do desenrolar da trama, pistas que podem recompensar aqueles que conseguem antecipar a resolução do mistério final – vale lembrar que a recompensa se dá na medida em que as pistas não são óbvias demais. E há aqueles em que meio que já sabemos o que acontecerá, mas que também são importantes para que analisemos se perceberíamos as “pistas” dadas aos personagens como tais, caso coisas semelhantes nos acontecessem na vida real – é muito fácil julgarmos um personagem burro quando temos mais informações do que ele; por isso, é bom sermos lembrados de que nem sempre vemos o que está a um palmo do nosso nariz.

É o primeiro dia de aula… sempre! perdeu uma ótima oportunidade de ser um exemplo do segundo tipo de livro. O que é um pouco preocupante, se você leva em conta que R. L. Stine, o autor, já vendeu mais do que 400 milhões de exemplares de seus livros mundialmente – ele é famoso pela série Goosebumps, de livros de “terror” para crianças (algo facilmente perceptível no segundo e no terceiro “primeiro dia de aula” da obra aqui analisada). Num mundo em que os videogames alcançaram um alto nível de complexidade e refinamento em sua estrutura narrativa, é de se surpreender que um livro seja tão condescendente e desprovido de ambição. Crianças e adolescentes (nem vou entrar na questão “jovens adultos”) têm capacidade maior do que isso – vide como sacam tão bem os videogames.

Ou seja, não há lá muita razão para nivelar tão por baixo…