Li o livro Carta a D., de André Gorz, empréstimo inesperado de um amigo sociólogo. A despeito da simplicidade da obra, a leitura foi muito prazerosa, enriquecedora, e até mesmo reconfortante, em vista de alguns questionamentos que me têm atormentado por esses anos. Trata-se de um livreto de pouco mais de 70 páginas, escrita livre e despretensiosa deste pensador que, descobri depois, inspirou os movimentos de maio de 1968, na França, e escreveu importantes obras teorizadoras do marxismo-existencialista.

Carta a D. explora outra temática e outra linguagem. A pretexto de escrever uma carta à sua – mais que esposa – companheira, o autor vai revelando as concepções de mundo de ambos, os valores que eles compartilham, uma ética comum, por assim dizer. E ao mesmo tempo revela um ultrarromantismo lúcido, um testemunho de identificação amorosa. Descobre-se, ou se redescobre, o incrível de se poder dividir uma vida com quem você se identifica não só fisicamente, mas também intelectualmente – até mesmo espiritualmente, como outros poderiam dizer, não o autor. Numa tal relação, o ambiente doméstico ultrapassa o sentido de lugar de refúgio, alienação, fuga. Assume o papel, primeiro, de provedor de ânimo e forças para os combates político-sociais; e, depois, representa a possibilidade de trégua e descanso ante as frustrações e desgastes inevitavelmente provocados pelos absurdos da vida em sociedade.

A obra, em si, não chega a ser um primor literário, e realmente ela não se propõe a isso. Sua estrutura é bastante simples, e o único recurso que chama a atenção é a escolha do gênero epistolar: elege como interlocutora a própria esposa, Dorine, e utiliza o pronome de tratamento “você”, o que seria corriqueiro se se tratasse de uma verdadeira carta de amor; como a obra evidentemente ultrapassa esse limite, identificamos aí um recurso literário eficaz à proposta do texto. Evidentemente o livro é uma homenagem à sua companheira, mas é também uma obra que ultrapassa a mera correspondência/confissão. Isso fica claro em vários aspectos, por exemplo, nas passagens em que o autor retoma momentos importantes da vida de ambos, apresentando seus ideais, seu percurso familiar e profissional; isso seria dispensável numa verdadeira carta, onde remetente e destinatário conhecem a história de sua vida compartilhada, mas mostra-se útil e esclarecedor num livro destinado também ao leitor comum.

Há no livro, de outro lado, questões tangenciais que, embora abordadas brevemente, podem ser pontos de partida para outras reflexões. Uma delas é a força que a atividade da escrita exerce na vida do escritor (ou “escrevedor”), não apenas pelo conteúdo da mensagem, mas propriamente pelo ato de escrever. Em uma das passagens em que são transcritas conversas entre o casal, ouvimos de Dorine o reflexo complementar deste entendimento: “amar um escritor é amar que ele escreva”. Vejamos bem, não se trata de amar o que ele escreve, mas amar que ele escreva. A passagem é simplória, talvez por isso mesmo seja hábil a revelar a simplicidade do amor traduzido em atos de compreensão, respeito, companheirismo, admiração.

Outro exemplo de questão instigante, ainda que acessória no livro, é a importância da mulher na vida do autor, que suplantou o papel de esposa e companheira, proporcionando muitas vezes refúgio, motivação, arrimo, esperança, auxílio profissional e conexão com pessoas e grupos relevantes. O que surpreende não é propriamente essa atuação da esposa, mas a confissão do autor de ter muitas vezes negligenciado a notória importância que ela teve em sua vida. Nesse sentido, o livro não deixa de ser uma bela redenção.

Não sendo o livro propriamente uma carta suicida, a narrativa não chega ao momento em que ambos decidem se suicidar juntos. Assim, é importante que se tome conhecimento disto antes da leitura do livro, seja pelo contato com as fontes que noticiaram o fato à época (não foi meu caso), seja pela prévia leitura da orelha do livro – que, aliás, apresenta um texto de Ecléa Bosi que instiga o leitor e às vezes supera o próprio texto comentado.

Outro detalhe que enriquece esta edição da Cosac Naif é o formato do livro, que imita um envelope de carta. A orelha da capa equivale ao que seria a primeira dobradura do envelope, o qual, ao se abrir, revela na parte de baixo uma bonita fotografia do casal. Gostei também do posfácio, bastante objetivo, no qual Josué Pereira da Silva resumidamente explica ao leigo quem é André Gorz, e da tradução de Celso Azzan Jr., que incluiu pequenas notas informais com o mesmo objetivo. Ao final, apresenta-se resumidamente a bibliografia do autor, tanto as edições originais quanto as publicações no Brasil.

Pela perspectiva de se contar a “história de um amor” – o de Gorz e Dorine -, pode-se dizer que os momentos mais interessantes do texto, e que causam maior comoção, são os que revelam a cumplicidade desta identificação amorosa, a qual, sem anulá-los individualmente, os fortalece como companheiros de paixão, de ideias, de vida e de morte. Vale a leitura.

Sobre a autora: Hendye Gracielle. Advogada não praticante. Burocrata de carteira assinada. Cronista de plantão. Escreve crônicas semanais no blog Cartas ao Jorge, mas às vezes a semana dura mais de sete dias. Visita esporadicamente o Facebook, a depender do alinhamento dos astros. Responde e-mails (hgborem@yahoo.com.br). Tem um amigo invisível chamado Jorge.