Com o crescimento da blogsfera literária, e do interesse de editoras e leitores nos blogs sobre livros, uma espécie de tradição tácita surgiu no final de 2008: as melhores leituras do ano. Não eram lançamentos ou clássicos, apenas o melhor livro que os olhos famintos tiveram o prazer, gastro-literário-orgásmico, de engolir. Para não perdermos o bonde, a tradição, o fio, ou elo, convidamos tradutores, editores, escritores, críticos, jornalistas, apresentadores e figurinhas carimbadas (a.k.a. arroz-de-festa) da vasta internet para nos contar qual foi a melhor leitura do seu ano de 2012.

Ilustração: Ana Mohallen
Ilustração: Ana Mohallen

Sérgio Flaskman (tradutor)O passageiro no fim do dia, de Rubens Figueiredo: Tem a extraordinária capacidade do Rubens de captar o valor dos gestos pequenos mas decisivos de resistência, apresentados com um texto impecável de ponta a ponta.

Luisa Geisler (escritora)Os enamoramentos, de Javier Marías: Eu vinha me cobrando pra ler Javier Marías há muito tempo. É um autor que muita gente me recomendou, e achei que era a oportunidade com Os enamoramentos, lançado em 2012. O enredo beira o prosaico: um casal, uma morte, pessoas que aparentam o que não são. Mas a proposta é, dessa forma tão simples, por em xeque tudo que pré-concebido. Reconhecimento, releitura, tudo de novo. Terminado o livro, li alguns outros do autor, mas nenhum me marcou tanto quanto Os enamoramentos. Não sei se foi alguma coisa com ter-sido-a-primeira-obra-que-li-dele ou sei lá. Sei que me marcou e pronto.

Vínicius Jatobá (escritor e crítico literário)O sonâmbulo amador, de José Luiz Passos, e Os enamoramentos, de Javier Marías: O livro do ano nacional foi O sonâmbulo amador, segundo romance do pernambucano José Luiz Passos. Li duas vezes, uma para escrever uma resenha (que acabou não saindo) e mais recentemente durante uma viagem de avião. É uma narrativa bem acabada e envolvente em que um paciente numa clínica psiquiátrica revisita sua vida em quatro cadernos, um exercício proposto pelo médico responsável por seu tratamento. Passos alia uma reflexão sobre memória e identidade com o já alienado e combalido desejo de tramar um bom enredo, com bons personagens. Fico surpreso que o livro não tenha conquistado mais leitores. Ao menos ainda. O melhor livro traduzido por aqui foi Os enamoramentos, que resenhei duas vezes, uma em ocasião do lançamento original, e outra quando a bela edição da Companhia das Letras ganhou as livrarias. Narra uma estória simples: um assassinato repleto de lacunas, um amigo que logo se torna suspeito de ser mandante do crime. Contudo, como no melhor de Marías, a trama simplória é apenas o suporte sobre o qual ele tece sua vocação de pensador do eros, do convívio e da legalidade contemporâneos. Como menção honrosa duas exemplares edições da Cosac Naify: os contos reunidos de João Antônio, e a obra reunida de Bruno Schulz. Também merecem loas a conclusão do Livros das mil e uma noites, pela editora Globo, e o melhor romance (até o momento) do melhor escritor de sua geração, o excessivo Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera.

Daniel Galera (c) Renato Parada
Daniel Galera (Foto: Renato Parada/Divulgação)

Daniel Galera (escritor): Skagboys, de Irvine Welsh: Um livro que me marcou bastante em 2012 foi o romance Skagboys do Irvine Welsh, que é uma “prequel” do seu famoso Trainspotting. É o melhor livro que Welsh publica em muitos anos, e talvez seja ainda melhor que o próprio Trainspotting, engraçado, triste e cheio de grandes personagens. Eu e Daniel Pellizzari vamos traduzi-lo em 2013.

Raphael Montes (escritor)Traduzindo Hannah, de Ronaldo Wrobel: O melhor livro que li em 2012 foi Traduzindo Hannah, do carioca Ronaldo Wrobel. A pretexto de narrar uma história de amor (platônico), Wrobel faz um retrato sutil dos imigrantes judeus na Era Vargas e cria uma trama repleta de intrigas, com personagens bem trabalhados. Agora, quando passo na Praça Onze, procuro inevitavelmente o sapateiro Max Kutner e, com alguma esperança, espero encontrar também a Hannah do título, tão bela quanto misteriosa.

Marcelo Valletta (cineasta e escritor) – Ilusões Perdidas, de Honoré Balzac:
Minha melhor leitura de 2012 foi Ilusões Perdidas, de Balzac. Tinha lido pouco antes, em francês, Le Père Goriot (numa edição de bolso que comprei em Paris) e dei seguimento com Ilusões…, também em edição de bolso, mas em português. Nunca li nada de Balzac que não fosse um deleite; agrada-me muito a fluência de sua narrativa, que em minha opinião supera com folga boa parte da prosa contemporânea. O curioso é que li as mais de 700 páginas em uma situação nada confortável ou glamourosa: em pé, num ponto de ônibus ao lado do Minhocão, a caminho do trabalho (e não um trabalho qualquer, já que sou colega de um dos protagonistas, Lucien de Rubempré). Agora não vejo a hora de comprar Esplendor e misérias das cortesãs” para fechar essa trilogia informal e ficar tão triste com sua conclusão como ficou Oscar Wilde.

Luciana Thomé (editora) – A outra praia, de Gustavo Nielsen: 2012 foi um ano atípico. No primeiro semestre, eu estava grávida. No segundo, com um bebê recém-nascido. Resultado: muita felicidade, mas com o número de livros lidos no ano reduzido para menos da metade da média. Dessa forma, mantendo o caráter “inédito” do período, decidi indicar como melhor leitura um livro que se encaixasse nessa característica: A outra praia, de Gustavo Nielsen. Autor premiado na Argentina, esse é o seu primeiro livro lançado no Brasil (recebeu o Prêmio Clarín de Romance em 2010), com tradução de Henrique Schneider. Uma narrativa longa, com toques de suspense e mistério, que vai conduzindo o leitor até o desfecho surpreendente. Antonio sente uma falta de conexão com a família e com o mundo que o cerca. Acaba se refugiando na fotografia, saindo à rua para registrar imagens de estranhos. É num desses passeios que encontra uma jovem, que torna-se sua obsessão. O único lamento é que é impossível falar mais sem entregar a trama e encher esse pequeno parágrafo de spoilers, pois é o leitor que descobre que “outra praia” é essa.

Laura Almeida (editora da Pink Vader)A Marca da Athena, de Rick Riordan: O que não faltou em 2012 foram livros bons! Consegui ler 24 ao total e fico feliz ao perceber que foi um mais envolvente que o outro.  Z 2134 é um romance que se passa no futuro e está sendo lançado em forma de série através do Kindle. Esbarrei nele sem querer explorando a seção de Daily Deals e o fato de ser algo tão fresquinho – começou agora em outubro – e desconhecido me faz gostar ainda mais da obra. É sensacional acompanhar o desenvolvimento de uma obra literária em tempo real! Me conquistou por ser bem escrito, ter uma história envolvente inspirada em 1984 e Jogos Vorazes, acrescentando um novo elemento: zumbis. Descrevendo assim não parece boa coisa, mas, acredite, é viciante! Outro livro que gostaria de destacar é A Marca da Athena, o terceiro da série Os Heróis do Olímpo de Rick Riordan. Esse é um autor que merece mais crédito do que recebe. Acho bastante interessante como o universo por ele criado está se expandindo e amadurecendo. De infantil para adulto com bastante espaço para surpresas, risadas e até algumas lágrimas. Blockbuster do jeito que tem que ser!

Emilio Fraia (escritor e editor)A vida privada das árvores, de Alejandro Zambra, e Los ingrávidos, de Valeria Luiselli: Dois livros irmãos: A vida privada das árvores, do Alejandro Zambra, e Los ingrávidos (que no Brasil saiu como Rostos na multidão), da mexicana Valeria Luiselli. Nos dois, os protagonistas tentam escrever um romance. Nos dois, há crianças e árvores – no de Zambra, um bonsai; no de Valeria, uma árvore seca cheia de post-its, com anotações sobre o poeta mexicano Gilberto Owen. Nos dois, a narrativa principal é interrompida e invadida por outra: a voz do poeta mexicano se mistura às memórias da narradora de Los ingrávidos, e o narrador de Zambra deixa de lado o que vinha nos contando para inventar uma história sobre a afilhada do protagonista.

José Roberto Torero (escritor)Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes: Minha melhor leitura não foi um lançamento de 2012, mas de quatrocentos anos atrás: El ingenioso hidalgo D. Quijote de la Mancha. Na época da Faculdade de Letras (cursei português e espanhol na FFLCH), como o livro era muito grande, fiz a picaretagem de escrever meu trabalho apenas sobre os títulos dos capítulos. E passei de semestre. Agora, com trinta anos de atraso, finalmente li o dito cujo de fio a pavio. E no original. Achei-o divertido, moderno, cheio de graças metalinguísticas, de histórias que interrompem a narrativa principal e de outras invenções literárias interessantíssimas. Se eu soubesse disso aos vinte anos, não teria lido apenas os títulos.

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Roberta Martinelli

Roberta Martinelli (apresentadora do programa Cultura Livre) – Instruções para salvar o mundo, de Rosa Montero: Histórias de pessoas que vivem à margem do mundo, com vidas tão duras, tão difíceis e mesmo assim a vida é tão insistente em viver, como diz a própria autora “É que a humanidade dividi-se entre aqueles que sabem amar e aqueles que não sabem”.

Carlos Henrique Schroeder (escritor)Dejen todo en mis manos, de Mario Levrero: O livro e a leitura. O uruguaio Mario Levrero (1940-2004) fez de Dejen todo en mis manos um bom modo dos leitores iniciarem em sua obra. Escrito em tom de romance policial, narra os dilemas de um escritor fracassado que recebe de seu editor a missão de encontrar Juan Pérez, autor de um manuscrito genial que se esconde no interior do Uruguai. O escritor inicia uma viagem kafkiana em busca de Pérez, mas também do sentido da literatura e da existência. Romance que se lê de um fôlego só, graças à impecável fluidez do autor e ao enredo detetivesco, o livro sairá neste semestre com tradução de Joca Reiners Terron pela Rocco, com o título de Deixa comigo. Previsto também para 2013, o lançamento de La novela luminosa, a obra-prima de Mario Levrero e um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos. Levrero teve entre seus admiradores o escritor Roberto Bolaño, outro mestre da fluidez e da ironia.Um trecho: o início de Dejen todo en mis manos do Mario Levrero

“—La novela es buena —dijo el Gordo, e hizo una pausa
significativa—. Pero…
Podía habérmelo imaginado, porque sé desde hace unos
cuantos años que mis novelas pertenecen a esa clase; buenas,
pero… Los críticos se esfuerzan por clasificar mi literatura
como perteneciente a tal o cual categoría, pero los editores
son más realistas, y unánimes; hay una sola categoría
posible para mi literatura: buena, pero…”

Rafael Bán Jacobsen (escritor)Enquanto água, de Altair Martins: Merece destaque, entre minhas leituras de 2012, Enquanto água, de Altair Martins. Em uma edição bem cuidada, elegante, com ilustrações que se harmonizam e quase se mimetizam aos textos, encontramos uma série de contos exemplares nos quais comparecem as características que consagraram o autor gaúcho como um dos mais originais e destacados da atual cena literária: os experimentalismos linguísticos e formais, as exóticas figuras de linguagem, a comunhão entre o fantástico e o corriqueiro, a preocupação central com a apreensão psicológica e a elaboração de atmosferas, a intencional densidade narrativa que exige sempre uma revisita para que se faça, na experiência de leitura, a luz do entendimento. Mesmo o autor sendo fiel ao seu estilo e às suas obsessões, cada conto é único e traz em si algo de asfixiante e essencial – feito água.

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Joca Reiners Terron

Joca Reiners Terron (escritor)Papeles falsos e Los ingravidos, de Valeria Luiselli: O livro de ficção de que mais gostei em 2012 foram dois, ambos da mexicana Valeria Luiselli. O primeiro que li também é a estréia dela, Papeles falsos, uma reunião de ensaios soberbamente escritos que misturam viagens — a Veneza, por exemplo, no qual ecoa outro ensaio sobre a cidade, escrito por Joseph Brodsky — exílios, mudanças etc. Nesses textos híbridos tem de tudo: autobiografia, reflexões sobre literatura e filiologia (como um que fala sobre as origens e ressonâncias da palavra “saudade”). O segundo livro de que mais gostei em 2012 é o primeiro romance de Luiselli, Los ingravidos, publicado no Brasil pela Alfaguara com o título “Rostos na multidão”, que se refere a um poema de Pound. É engraçado que li o original e depois li a tradução. Ao fazer isso, comecei a identificar uma série de mudanças, como personagens que mudavam de nomes e situações que despareciam, desde a profissão do marido da protagonista, por exemplo. Incomodado, escrevi pro editor, que me esclareceu que a própria autora fez as mudanças. Fiquei sem saber o que as motivou, porém o livro — que conta a história de uma separação, entre outras coisas — continuou a ser ótimo mesmo assim.

Miguel Del Castillo (escritor)A Good Man is Hard To Find and Other Stories, de Flannery O’Connor: No finzinho de 2012 resolvi ler os dez contos de A Good Man is Hard to Find and Other Stories (1955), primeiro e retumbante volume de narrativas curtas da Flannery O’Connor (1925-64). Sintam o drama: uma católica born and raised num Sul dos Estados Unidos racista e no qual predominava uma vertente fundamentalista do protestantismo; uma escritora mulher e religiosa num meio dominado por grandes autores (homens) e, geralmente, antirreligião. Os contos têm o grotesco e o inesperado como tônica comum, pontuando em momentos decisivos as histórias e os personagens – solteirona com perna de pau, rosto “ossudo, suarento, brilhoso”, crianças tocando fogo numa fazenda inteira (e de propósito). É impressionante como as questões metafísicas são colocadas de modo não abstrato – estão coladas na matéria narrada. A dupla de palavras “Realismo e transcendência” – título do posfácio do Cristóvão Tezza para a edição brasileira dos contos completos (Cosac Naify, 2008) – resume bem: essas duas instâncias realmente coexistem e é desse embate, dessa aparente incongruência que emerge uma das principais forças da literatura da Flannery. (“Ok, mas me diz um, um conto para ler e não esquecer.” Se não o do título, sem dúvida “Gente boa da roça”, obra-prima universal do gênero.).

Daniel Pellizzari (escritor)Remainder, de Tom McCarthy: O melhor livro de ficção que li em 2012 foi Remainder, do inglês Tom McCarthy, lançado em 2006. É a história de um sujeito que sofre um acidente nunca descrito, recebe uma indenização milionária e após um curto período de indecisão passa a usar o dinheiro para recriar nos mínimos detalhes locais, cenas e momentos que viveu (ou acha que talvez tenha vivido) no passado. Perfeito em tom e extensão, um livro inesquecível sobre autenticidade, obsessão e, em última análise, busca pela felicidade (e tudo que isso implica: do conceito de “felicidade” ao sentido de qualquer busca). De troco, ainda serve para pensar um pouco sobre literatura e artes narrativas em geral.

Julián Fuks (escritor)Documentário, de Tiago Novaes: Um sujeito que examina a si mesmo em cada uma de suas faces, um homem que se investiga em detalhes num amplo espelho feito de palavras. Seu nome, Tiago Novaes, autor e personagem de Documentário. A meio caminho entre a literatura e a autoanálise, esse romance traspassa de forma inaudita as fronteiras da escrita autoficcional – fronteiras tão habitadas nestes tempos de ficcionalidade escassa. Tão longe Tiago vai que até se obriga a prescindir das palavras anotadas, incluindo na obra uma exploração cinematográfica de suas próprias origens e de sua saga familiar. Inclui também a visão de dois críticos convidados, e tive a satisfação de escrever para ele algo que se poderia chamar de posfácio. Pela profundidade desse mergulho na própria alma, o livro desse jovem brasileiro foi uma das leituras que mais me impressionaram no ano passado.

Bruno Mattos (jornalista, escritor e tradutor)Leaving the Atocha Station, de Ben Lerner: A minha melhor leitura de 2012 foi também a minha primeira concluída em um livro digital (sinal dos tempos!). Ainda sem tradução para o português, Leaving the Atocha Station é um livro ao mesmo tempo inteligente e divertidíssimo. Nele, Adam Gordon, um norte-americano aspirante a poeta ganha uma bolsa de estudos em uma instituição de ensino espanhola e se muda para Madri sem saber direito o que espera da vida. Ao invés de cumprir com suas obrigações acadêmicas, passa a maior parte do tempo enchendo a cara e tentando se relacionar com alguns amigos locais, apesar de ter um espanhol atroz. Em meio a isso tudo, ocorrem os atentados terroristas de 2004, e o cinismo e a angústia do protagonista por não estar tendo “uma experiência real, mas apenas uma experiência da experiência” acabam sendo deixados de lado. É aí que ele se dá conta de que, na verdade, está vivendo uma experiência de fato, aprendendo muito sobre a vida e até se tornando um ser humano melhor. Fazia tempo que eu não lia algo tão verossímil. De escrita ágil e recheada de trechos hilariantes (alguns deles quase involuntários, mas magistralmente construídos, como os mal entendidos causados pelo domínio limitado que Gordon tem do espanhol), é uma leitura leve, mas que toca questões essenciais em relação a como sentimos as experiências. O livro é maravilhoso.