Hoje é o centenário do nascimento de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), nascido em Recife, falecido no Rio de Janeiro. É um poeta que ligou diferentes partes do país e se relacionou com autores diversos, sendo homenageado por muitos deles. Ele mesmo também fez suas homenagens pela poesia, como as da seção “Linguagens alheias”, de Agrestes (1985). Escolhi alguns desses poemas, os que mais me agradam e que, em sua diversidade de direções, mostram também um pouco da diversidade da poesia do próprio João Cabral. Espero que vocês gostem.

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Murilo Mendes e os rios

Murilo Mendes, cada vez que
de carro cruzava um rio,
com a mão longa, episcopal,
e com certo sorriso ambíguo,

reverente, tirava o chapéu
e entredizia na voz surda:
Guadalete (ou que rio fosse),
o Paraibuna te saluda.

Nunca perguntei onde a linha
entre o de sério e de ironia
do ritual: eu ria amarelo,
como se pode rir na missa.

Explicação daquele rito,
vinte anos depois, aqui tento:
nos rios, cortejava o Rio,
o que, sem lembrar, temos dentro.

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Dúvidas apócrifas de Marianne Moore

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo
impuramente, a quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

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Díptico: José Américo de Almeida

1. A bagaceira
Muito marcou o adolescente
o que pareceu tua desarte,
vendo em livro o que tinha ouvido,
bem antes de ouvir dos Andrades.

Marcou-o, mostrando que escrever
é antes de mais nada a aventura
de tratar com a linguagem tudo
que receia a castiça e eunuca.

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2. Brinde nos noventa anos
Brindo ao mestre de nós todos
vindos de certo Brasil
onde o Brasil é mais pobre,
não é futuro nem mil:

aos noventa anos chegaste
fiel ao ser-dizer duro:
sem que se faça um presente,
não pode haver um futuro.

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Contam de Clarice Lispector

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?


Daniel Falkemback mora em Curitiba, faz doutorado em Letras na UFPR e escreve aqui e no jornal Rascunho.