As aventuras de Jackson*

Quase dez anos depois do lançamento de O Retorno do Rei, o diretor Peter Jackson retorna ao mundo da Terra-média

NOTA: 9

Para os fãs do escritor sul-africano J. R. R. Tolkien, Peter Jackson já é quase parte da família. Hábil ao levar às telas com confiança o clássico O Senhor dos Anéis, o diretor não só ganhou o respeito dos admiradores do livro, como criou um novo mundo de possibilidades – para quem já assistiu ao filme e resolveu ler o livro depois, impossível imaginar paisagens e personagens diferentes daqueles retratados no cinema. Quando anunciou o lançamento de O Hobbit, foi como se todos os sonhos dos fãs (ou quase todos) se tornassem realidade.

Após assistir duas vezes ao longa no cinema em 48 quadros por segundo (o polêmico “hfr”), só posso dizer que, apesar de ter gostado muito, fiquei decepcionada. Não pela qualidade da película, extremamente realista e bem feita, ou ainda pelas paisagens estonteantes, transformando definitivamente a Nova Zelândia na Terra-média da vida real. Me desapontei pois estava esperando algo totalmente diferente, tanto quanto uma história é diferente da outra. O mundo é, sim, o mesmo, e entendo as analogias que foram feitas para o espectador poder fazer o paralelo entre uma e outra trilogia. O que não esperava, contudo, era a repetição de algumas situações e até mesmo da (pasmem!) trilha sonora, que em determinados momentos é idêntica àquela de Senhor dos Anéis.

Considerando que conheço essa trilha de trás pra frente, quando ouvi as mesmas notas que se referiam a um determinado momento da trilogia anterior sendo utilizada em um contexto totalmente distinto – no caso, quando Thorin decide atacar Azog há o mesmo tema musical de quando Frodo é esfaqueado no Topo do Vento – senti uma ponta de tristeza que talvez não se dissolva com os filmes que vêm a seguir.

Aqueles que estão familiarizados com a obra de Tolkien sabem que o que acontece com a narrativa de Bilbo Bolseiro pouco tem a ver com o desenrolar da história de seu sobrinho Frodo, 60 anos depois do achado do Anel. Mais uma vez, entendo que foram necessárias alterações para linkar ambas as histórias, mas confesso que esperava por algo novo e com cheiro de saído do forno. A sensação que me deixou foi como se este fosse um quarto filme da trilogia anterior. De certa maneira, é.

Mas é preciso ressaltar que isso não faz com que eu desgoste ou odeie o filme. Pelo contrário. As cenas de ação são ótimas, as paisagens, deslumbrantes, e a aventura diverte até os momentos finais. Infelizmente, alguns dos melhores momentos do filme são aqueles que não aparecem no livro: as cenas da destruição de Valle e Erebor, a chegada do dragão e as batalhas dos anões contra os orcs em Moria. E por mais interessantes que sejam essas passagens, elas pouco têm a ver com a história em si.

A narrativa tornou-se fragmentada, intercalando cenas de profundidade psicológica, que finalmente explicavam mais dos seus personagens (em especial Thorin Escudo-de-Carvalho), com um perigo atrás do outro. Tornaram um livro de narrativa leve e quase infantil em uma história séria e com carga dramática que na realidade não existe. A relação de Bilbo com Thorin ao final é patética e forçada. As atuações se salvam porque, afinal de contas, Jackson é um bom diretor e sabe conduzir seus atores. É difícil destacar, contudo, qual a melhor atuação, uma vez que só conseguimos nos lembrar do nome de três personagens novos ao fim da projeção: Thorin, Radagast e, claro, o próprio Bilbo – que se saem muito bem com aquilo que lhes foi dado.

Atuações como a de Ian McKellen ou Hugo Weaving são sempre prazerosas de se assistir, e seus personagens se destacam entre quaisquer em cena. Já Cate Blanchet transformou Galadriel numa estátua. Ela mal se move e, quando o faz, parece que está levitando sobre uma plataforma. Sei que isso seria uma “característica dos elfos”, mas não me convenceu. A cena do Conselho Branco é, apesar de tantos talentos reunidos, um pouco constrangedora.

O ponto alto do filme, sem dúvida alguma, é a aparição de Andy Serkis como Gollum. Totalmente à vontade na pele do anti-herói, a cena da charada em sua caverna escura é tocante. Aliando a ingenuidade e a vilania do personagem, Serkis confere ainda mais àquele que já conhecíamos tão bem. Angustiante, sofremos com a ânsia de Bilbo, e compreendemos por que, apesar de trapacear, aquela parecia a coisa certa a ser feita. O momento no qual ele poupa a vida da criatura (sem que ela sequer imagine) e salta por cima dela é magnífica.

Mas, no fim, a impressão é que Peter Jackson enfim cedeu às tentações de Hollywood para ganhar rios de dinheiro, fazendo três filmes de um único livro – isso era totalmente compreensível no caso de O Senhor dos Anéis, uma narrativa muito mais complexa que esta. Para o caso aqui tratado, realmente não faz sentido. Não há história suficiente para preencher três filmes, mesmo que ele vasculhe nos relatos mais obscuros das History of Middle-Earth – o compêndio de 12 livros publicado por Christopher Tolkien. São personagens que, mesmo no livro, não têm muita personalidade; alguns mal são citados e parecem estar lá para fazer número. A narrativa consta em andar, cair em uma armadilha, correr perigo, ser salvos por Gandalf – até o ato final quando chegam enfim à montanha e Bilbo pode mostrar seu valor.

Certamente os dois próximos longas darão mais atenção aos anões, pois haverá tempo de sobra para explorar cada um. As viagens de Gandalf, seu contato com Aragorn, a caça a Gollum… tudo estará lá, bem explicadinho. Fico feliz em saber que posso ver essas coisas no cinema, é algo que agrada aos fãs. Não posso dizer, contudo, que este filme tenha a mesma qualidade que os anteriores da mitologia tolkieniana.

*Antes que alguém diga que eu não conheço a obra, é bom mencionar que já li todos os livros de Tolkien muito mais de uma vez.