por Tiago Guilherme Pinheiro

É significativo que nas últimas semanas hajam coincidido, mesmo que por acaso, tantas reportagens sobre um assunto que já há algum tempo não ganhava tanto destaque: o livro artesanal. Com aquele interesse que se desperta por práticas e técnicas no justo momento em que, acreditamos, elas começam a desaparecer, acompanhamos a inauguração de uma exposição no Centro de Artes do Livro de Londres em que artistas e autores produzem seus próprios volumes manualmente e a abertura de cursos de edições artesanais na Faculdade de Artes Gráficas de Leipzig. Não é redundante, portanto, adicionar a essas iniciativas – infelizmente, um pouco distantes – uma outra, mais ao alcance de nossas mãos e que, talvez, corra o risco de passar desapercebida. A editora curitibana Arte & Letras acaba de lançar uma bela coleção de livros impressos à moda antiga, com tipografia, costurada manualmente, com capa de tecido e, além disso, ilustrações em xilogravuras. A primeira leva é composta por três clássicos da narrativa breve: Os assassinatos da Rua Morgue de Edgar Allan Poe (tradução de Guilherme Braga e ilustrações por Frederico Tizzot), Um coração singelo de Gustave Flaubert (trad. Beatriz Sidou e ilustr. Mariana Leme) e Luzes de Anton Tchékhov (trad. Gabriela Soares da Silva e ilustr. Santidio Pereira).

Basta iniciar a leitura de qualquer um desses volumes para compreender o que está em jogo nessa discussão em torno da edição artesanal. Que no caso dos textos de Poe e de Flaubert se trate possivelmente de releituras, não minimiza em nada essa experiência. Pelo contrário: ela se torna inclusive mais aguda. Afinal, mais que nostalgia repentina frente às novas tecnologias, ou alimento para o fetichismo cultural, essa iniciativa é uma oportunidade para se dar conta de como a diversidade de modos de apresentação de um livro interfere nas possibilidades de relação com o texto.

Não só porque adiciona elementos, como as ilustrações, ou porque oferece outra versão do texto, com as novas traduções, mas porque lembra que a atividade editorial consiste em abrir novas oportunidades para que o leitor possa conectar-se com o texto, preenchendo-o. Esse gesto é o complemento necessário ao impulso de inserir novos nomes ao catálogo dos escritores disponíveis ao público brasileiro, algo que a Arte&Letra já vinha praticando com a revista que leva o nome da casa e que já se encontra na vigésima primeira edição, a de letra “T”, e que já disponibilizou uma lista tão larga quanto heteróclita de narrativas curtas, e que inclui J. M. Coetzee, Valêncio Xavier, Mikhail Bulgákov, Enrique Vila-Matas, Karel Čapek, E.T.A. Hoffman, Vladimir Nobokov, Joca Terron e D. F. Wallace.

As edições artesanais, entretanto, abrem uma reflexão sobre o vínculo entre o suporte livro e o processo cognitivo e afetivo que chamamos leitura. O neurologista e ensaísta inglês Oliver Sacks, num texto recente (“Reading the Fine Print”), aponta justamente como a redução da variedade de formas de apresentação dos textos diminui as chances de indivíduos formarem modos singulares de ler e mesmo de estabelecer conexões com a escrita. Isso porque a formação do processo de leitura é único e vai muito além da decodificação de signos textuais, já que cada cérebro estabelece, ao seu próprio modo, conexões entre a área de formação de palavra e outras partes, com as mais distintas funções. Portanto, dependendo da pessoa, tal atividade pode necessitar ou prescindir de páginas impressas, leituras não-lineares, ilustrações, sons, letras maiores ou menores e mesmo de um suplemento táctil. Ao estudar casos extremos de alexia (no qual o indivíduo consegue escrever, mas não ler) ou de cegueira (inclusive dentro de sua experiência pessoal), Sacks mostra como tais variações não afetam apenas aqueles cuja prática de leitura teve que ser bruscamente ressignificada devido a alguma modificação radical em seu corpo. A multiplicidade ou a planificação dos elementos de composição de um livro (a página, o papel, o tamanho das letras, a tipografia, as ilustrações) não só dá corpo ao texto, mas também possibilita a criação de um corpo de leitura. Multiplicar as variações desses materiais – seja em relação ao suporte, às imagens que o ilustram ou à tradução que o reescreve – é proporcionar maiores possibilidades de construir ou reconstruir essa atividade de leitura, para novos e velhos leitores. De certo modo, a importância das edições artesanais reacende uma velha intuição: a de que a constituição da própria capacidade de leitura tem, ela própria, uma forma artesanal.

Assim, essas novas edições de Poe, Flaubert e Tchekhov destacam e diferenciam os três processos de tradução – textual, visual e também tátil – implícitos em qualquer publicação, para assim multiplicar as possibilidades de reinscrição do texto por parte do leitor.

Tchekhov inédito

A coleção da Arte & Letra, além de re-apresentar velhos clássicos do conto que já circulam entre os brasileiros, tem um destaque adicional: a publicação de um texto até hoje inédito em português de Anton Tchekhov (1860-1904), em tradução direta do russo. Trata-se do belíssimo Luzes, narrativa da fase madura do autor, escrito em 1888, um ano após aquela que é considerada uma de suas obras-primas no gênero, “O Beijo”.

Aqui, como em várias de suas histórias, o narrador, que trabalha como médico (tal como o próprio Tchekhov), descreve seu encontro com um engenheiro e seu ajudante, que lhe oferecem abrigo para fugir da noite e do frio que o encontram na volta para sua casa. Frente ao constante pessimismo do estudante, justificado por certo desprezo que o jovem tem pela fugacidade de todas as coisas, o engenheiro resolve narrar-lhe um episódio de sua vida, quando encontra uma amiga de infância, já casada, e que lhe pede que a leve embora, já que o marido a maltrata. Apesar da promessa, ele foge, pegando um trem para outra cidade. No caminho, vendo a paisagem, o futuro engenheiro tem uma espécie de iluminação, arrepende-se e retorna para buscá-la.

Entretanto, mais que confiar na eficácia exemplar desse episódio banal, o que em Luzes se mostra é a confiança no ato de recuperar e transmitir uma experiência simples, destinando-a a outra pessoa. Não é a história do engenheiro que está sendo posta em questão aqui, mas sim a importância do ato de contar tais banalidades, tal felicidade, como um modo de resistência contra a imobilidade derivada da contingência da vida. A distância que há entre o narrador-médico e esse engenheiro que nos conta a história é justamente o espaço que se abre para tal reflexão.

Nesse sentido, Luzes está aparentado com um brevíssimo relato, de 1894, intitulado “O estudante” (e que também foi publicado pela Arte e Letra: Estórias, no volume M), que foi considerado pelo próprio Tchekhov como o seu melhor texto até então. Ali, nada mais acontece do que um jovem seminarista que visita duas viúvas num dia de inverno sombrio e lhes narra uma das cenas bíblicas relacionadas à Santa Ceia, conhecido como “A negação de Pedro”. Logo depois, quando deixa as duas mulheres, esse catequizador, refletindo sobre a irrelevância do ocorrido, sente uma espécie de felicidade, e elabora uma reflexão sobre a história e como os pequenos acontecimentos também se elevam sobre ela, porque estabelece uma conexão entre fatos e pessoas, entre quaisquer pessoas e quaisquer fatos, mesmo que distantes no tempo. Esse talvez seja o conto no qual mais claramente Tchekhov apresenta uma espécie de “teoria” ética e estética de suas narrativas.

Por último, e o que parece mais raro, tanto Luzes como “O estudante” elaboram uma meditação e uma defesa sobre a felicidade, e mesmo de convocatória para enfrentamento da vida, como uma espécie de resistência, ainda que esteja claro que o destino dos homens e do mundo seja sombrio. Essa qualidade – a felicidade – que tão poucas vezes é oferecida aos personagens dos grandes clássicos literários do século XIX (ainda que não seja rara em seus leitores), torna esses contos de Tchekhov absolutamente singulares.

Serviço:

Um Coração Singelo
Gustave Flaubert
Trad.: Beatriz Sidou
Ilustrações: Mariana Leme

75 págs.
R$ 65

Assassinatos na Rue Morgue
Edgar Allan Poe
Trad.: Guilherme Braga
Ilustrações: Frederico Tizzot

75 págs.
R$ 65