Tudo tem seu preço nesse mundo. Tudo. E uma das coisas que costuma custar mais caro é a tal liberdade, coisa tão desejada quanto indefinível. Quantos relacionamentos não acabam, quantos filhos não abandonam a casa (mesmo que para voltar em seguida), por conta disso? Quantos países não se derrubam hoje em dia, em nome da liberdade de seu povo? Quantas pessoas não abandonaram tudo para viverem exiladas, buscando liberdade?

É justamente o preço da liberdade o ponto nevrálgico de O homem é um grande faisão no mundo, da alemã-romena Herta Müller. Herr Windisch – um alemão nascido em terras romenas, como Müller e tantos outros – é guarda noturno e sonha em deixar a Romênia para viver na Alemanha. Há, porém, um preço a se pagar. Ele carrega sacos de farinha até o moinho, até a casa do prefeito, esperando que o passaporte saia. Ele vê a atitude quase beatifica da filha que se sacrifica – indo para cama com diversas figuras de autoridade – para que esse passaporte saia.

Mas falar que o livro se resume a isso seria demasiado simplista. Certamente é isso que faz a narrativa girar, esse drama político, mas para além disso as personagens são humanas, constituídas de várias camadas de sentimentos e ideias, muitas vezes contraditórias. Os papéis sociais atribuídos aos gêneros e as relações entre as metades dessa equação são postos em cheque, não apenas no momento de crise, mas também buscando feridas do passado.

Windisch quer o passaporte. Quer levar sua família para a Alemanha, onde viverão entre alemães e como alemães, sem serem considerados cidadãos de segunda categoria. Ao mesmo tempo não quer que se sua filha se prostitua por isso: já lhe basta a esposa ter sobrevivido ao Gulag e à fome através do sexo. Sabe que é por ele que a filha se deita com aqueles homens, mas não consegue deixar de reparar no modo como ela curva os pés ao andar (o moleiro lhe disse que isso era um sinal de que não era mais donzela). Sabe que é a mesma necessidade que sua esposa teve, no passado. Mas não consegue deixar de ter raiva, de sentir-se humilhado.

Se existe uma pessoa capaz de entender a garota, é justamente Frau Windisch. Aprendeu com uma companheira de Lager que deixar os homens a tomarem poderia salvar sua vida. E salvou. Mas não sem consequências: tornou difícil ser amada, deixou marcas demais. Isso e a morte de seu antigo amante, seu verdadeiro amor.

Foi, aliás, essa morte que a uniu a Herr Windisch: entre os túmulos, entre os lamentos pelos amores perdidos – que a guerra lhes tirou – que se entregaram um ao outro pela primeira vez, foi então que, apesar de tudo que falavam daquela mulher, Herr Windisch permitiu-se amá-la. Sentimento que secou com o tempo, com a guerra que nunca acabou.

Como todo o resto da obra de Herta Müller, O homem é um grande faisão no mundo é um livro doloroso e bastante poético. Mas talvez ainda mais do que qualquer outro, é um livro imagético, com descrições ao mesmo tempo oníricas e palpáveis. É quase como se a autora pegasse as dores das personagens e as transformasse em objetos reais, que se pode tocar. Fala-se sobre política, sobre o exílio, mas também fala-se (e muito) sobre o amor, sobre a dor e sobre a saudade. Eu diria até que a solidão torna-se um tema muito maior do que os outros, que o verdadeiro exílio da família Windisch é o exílio que cada um sofre de si mesmo, daqueles sentimentos e palavras que não podem mais ser encontrados justamente por causa das feridas que o mundo lhes causou.

Curiosamente é um livro que parece causar certo arrependimento em Müller. Diz que parece pouco real, que mudaria muita coisa se o escrevesse novamente. Mas também fala sobre o desejo de partir – o desejo de liberdade – que todos almejam, especialmente sob regimes totalitários.