O sertão parece ser o cenário em que as histórias de José Lins do Rego melhor se desenrolam, e isso não é surpresa. Lins do Rego nasceu e foi criado nesse meio, com aqueles sujeitos, aquelas histórias, aqueles cheiros, sons, cores, rituais, práticas, costumes e modo de vida. A vivência naquele mundo se intensificou ainda mais na medida em que ele o cotejava para transformá-lo em literatura, absorvendo e reelaborando infinitos pequenos detalhes e encontrando o coração e as tripas do sertão a cada página que escrevia e a cada novo cenário ou história que seus olhos ou ouvidos eram capazes de apreender.
Como fenômenos sociais e históricos que muitas vezes tomavam lugar no sertão nordestino, o cangaço e o messianismo não podiam passar despercebidos por Lins do Rego. O escritor dedicou várias obras ao cangaço, e os costumes e as práticas religiosas aparecem não raras vezes em seus livros, sendo Pedra Bonita um ótimo exemplo disso.
O romance foi publicado em 1938, quando Lins do Rego já havia conquistado algum prestígio no mundo das letras brasileiras: os quatro primeiros romances do ciclo da cana-de-açúcar já haviam sido publicados e tinham sido bem recebidos, tanto pelo público quanto pela crítica. Nessa conjuntura é que Lins do Rego mais uma vez se voltou ao sertão, buscando deitar as raízes de sua ficção num evento que se passara na Paraíba no século XIX, em que pessoas foram sacrificadas em um ritual religioso.
Não bastasse a natureza espinhosa da aridez do sertão, o escritor encara também uma memória que já havia se tornado um tabu, mas cujo eco, distorcido e multifacetado, continuava a reverberar nas conversas, histórias e canções populares.
Para dissertar ficcionalmente sobre esse assunto, Lins do Rego não parte do evento em si, mas sim do presente (futuro do evento, portanto), usando o protagonista Bento Vieira, antigo morador de Araticum, para conectar os dois tempos. O passado de Bento está entrelaçado com os eventos da Pedra Bonita, local onde haviam ocorrido os rituais de sacrifício, de modo que os moradores de Açu, vila onde se passa a trama, estejam sempre olhando de maneira desconfiada em sua direção.
Os pais de Bento o haviam deixado aos cuidados do padre Amâncio quando, em 1904, escapavam da seca que assolava a região. Acreditando que melhor sina o esperava sob o zelo do padre, seus pais o deixaram em Açu, esperando que ele viesse a, algum dia, galgar alguns patamares da hierarquia eclesiástica. Essa é a situação na qual encontramos Bento no início de Pedra Bonita: ele é a “cria” do padre Amâncio, um coroinha que zela pela igreja do vilarejo e que é responsável por fazer badalar o sino no horário das missas.
A divisão da história adotada por Lins do Rego é responsável por intensificar o clímax da narrativa. Na primeira parte ficamos conhecendo Açu e seus moradores. Há os mandachuvas locais, como o Major Evangelista, o Coronel Clarimundo e o Juiz Dr. Carmo. Há as beatas, como dona Auta e dona Francisca. Há também os tipos comuns de pequenos vilarejos como esse, como o escrivão Paiva, o sacristão Laurindo, o coletor e contador de causos Joca Barbeiro, e o cancioneiro e violeiro Dioclécio.
Lins do Rego sabe muito bem como lidar com vários personagens, dando-lhes personalidade aos poucos, desenhando-lhes as feições com paciência e esmero. Por ocasião das conversas debaixo da tamarineira, ficamos conhecendo os homens da vila, como eles pensam, como valorizam sua hombridade, como se portam diante das intervenções do governo, como conduzem seus negócios, o que pensam sobre o cangaço, as mulheres e o trabalho. Por ocasião das conversas após a missa e as descrições do cotidiano doméstico, temos acesso aos deveres das mulheres, à natureza de suas tarefas, à difícil missão de ser mãe naquelas áridas condições e como a religião integra parte esmagadora da visão de mundo daquele microcosmo.
A dinâmica cotidiana da vila de Açu desfila perante os olhos do leitor de forma colorida sem que sua tessitura sépia e desértica seja esquecida. O escritor, que era amigo de Gilberto Freyre, célebre sociológico, antropólogo e historiador brasileiro, conseguia aliar as descrições subjetivas, sentimentais e emocionais de Açu e de seus habitantes sem perder de vista quadros mais amplos, que englobavam as classes sociais daquele ambiente e o lugar que a vila ocupava dentro da realidade sertaneja. Lins do Rego sabe contar sua história sem vitimizar todos aqueles sujeitos à seca implacável nem perder de vista o peso das condições árduas de existência naquele mundo. Aliando a literatura e a perspectiva sociológica, o escritor cria um retrato vívido que penetra nas tramas daquela realidade.
A segunda parte da história, ainda acompanhando Bento, visita a propriedade da família em Araticum. A volta à realidade familiar e a proximidade da Pedra Bonita servem para trazer mais ao centro do livro a sombria história do passado, quando um movimento messiânico ganhou força e arrebatou milhares de seguidores. A Pedra Bonita foi o palco onde a história se desenrolou, foi em torno dela que acamparam os milhares de fiéis, foi sobre ela que foram pregados os sermões e foi sobre ela, também, que as vidas foram tiradas como sacrifício para que varressem a maldição que calcinava aquele solo e aquela gente. Aquele pedaço de terra fora amaldiçoado permanentemente, pois ali, segundo diziam os moradores das redondezas, havia escorrido o sangue de Judas.
Lins do Rego tem o cuidado de preparar o leitor para essa história, dotando-a primeiro de concretude e de todo um contexto social, religioso e cultural, de modo que, quando ficamos conhecendo melhor os eventos ligados ao passado da Pedra Bonita, percebemos que as raízes do messianismo estão muito mais fundo no imaginário coletivo e nas tramas sociais do que pensamos de início. Naquelas condições concretas, com o sol a abrasar as plantações, com as safras falindo, o desespero tomando conta das pessoas e a esperança se esvaindo junto com a água, a comida e as condições mínimas de sobrevivência, a crença potencializada, digamos assim, fazia sentido.
O escritor não deixa se enganar por dicotomizações. Tem pouco valor investigativo – tanto em termos literários e sociológicos quanto em termos morais – uma leitura maniqueísta: é preciso compreender todos os fios de causalidade e sua interação para compreender aquele evento como processo humano. Não é simplesmente um bando de fanáticos nem é simplesmente um evento bestial, a densidade da trama é deveras maior e mais complexa, sendo precisamente essa densidade que o escritor procurou contemplar ao longo de toda a narrativa.
Uma raiz muito similar pode ser encontrada com relação ao cangaço, a partir dos cangaceiros que aparecem em Açu desafiando as autoridades, sendo que o próprio irmão de Bento, Aparício, resolve se juntar ao grupo. Eles não são emissários das trevas, são, a seu modo, produto daquelas condições de miséria e de sofrimento. A leitura que eles fizeram acerca de sua condição e acerca do futuro que lhes aguardava, lhes apontou o cangaço como uma possibilidade, ainda que sangrenta e arriscada. Nesse quesito Lins do Rego também não se deixou ludibriar por uma dicotomia vilão-vítima: a gama de fatores é tamanho e sua dialética é tão complexa que tal leitura dicotômica não a contemplaria.
Movendo-se com tranquilidade por esse seu tão conhecido cenário, lidando de forma valente e ousada com temas tão espinhosos e pesando suas colocações e palavras com cautela e talento, José Lins do Rego faz de Pedra Bonita um daqueles livros que são boas pedidas de história enquanto narrativa ficcional, mas que são, ao mesmo tempo, livros profundos e introspectivos, que exigem que nos atinemos com relação aos nossos próprios valores e julgamentos. Ou seja, uma obra que parte do princípio de que a literatura não é apenas lazer nem distração, mas sim uma forma expressiva que não deve se eximir de seus “deveres” em relação à realidade que a circunda – minha concepção ideal de literatura.
Muito útil para minha pesquisa sobre o romance de 30!
Valeu, Lucas!