São vinte anos de carreira e onze livros de ficção, todos publicados pela Companhia das Letras – um de contos, dez romances. Onze também é o título do primeiro romance de Bernardo Carvalho, escritor premiado com a maior parte dos mais prestigiosos prêmios dedicados à literatura em língua portuguesa. Jabuti? Ganhou. Portugal Telecom? Ganhou. APCA? Ganhou. São Paulo? Finalista. A coincidência numérica 1 leva o leitor comum – que se aventura pela primeira vez a entrevistar um dos autores pelos quais é meio obcecado – a perguntar-lhe sobre relações entre o novo romance 2 e suas obras anteriores.

O autor não poderia ter correspondido melhor às expectativas.

Eis a entrevista.

Aberração (1993) começa com uma epígrafe de uma obra inédita (e muito provavelmente fictícia) em que os humanos parecem ser considerados os monstros ou vilões da história: a evidência da presença de humanos se dá por uma pegada, mais ou menos como nas histórias sobre o Abominável Homem das Neves, algo que indicaria a raridade daqueles. Já em Reprodução (2013), vemos o “estudante chinês” declarar “Somos uma epidemia infestando o planeta, um surto. Nós somos a doença, circulando em aviões pelos quatro cantos do globo, espalhando a nossa morte com todo tipo de vírus desconhecido. E, como toda epidemia, temos um fim.” Já sabendo a opinião a personagem, pergunto ao escritor: a extinção da humanidade é um tema que o interessa pessoalmente?

Bernardo Carvalho –  O que mais me interessa é o paradoxo de uma espécie que, quanto mais luta pela sobrevivência, quanto mais procria, mais se aproxima do esgotamento das condições de possibilidade da sua sobrevivência. E, sobretudo, o que me interessa nesse paradoxo é o seu lado trágico, de uma consciência trágica que não me parece existir em nenhuma outra espécie. Nós volta e meia reproduzimos uma representação do juízo final. Hoje, com os discursos ambientalistas, por exemplo, passou a ser um lugar-comum achar que estamos nos aproximando do fim, mas o interessante é que nem essa consciência, respaldada pela ciência e transformada em senso comum, é capaz de nos fazer interromper o processo suicida. Continuamos caminhando pro precipício, sabendo que estamos indo pra lá. O homem pode associar sobrevivência e suicídio, mas nem por isso deixa de seguir adiante, rumo à sua própria extinção, como se fosse esse o seu projeto e o seu destino. Tem uma beleza trágica nesse paradoxo.

“Todo povo cala uma coisa para poder dizer outra”, escreve Ortega y Gasset numa das epígrafes de Reprodução. Você apontou, em entrevista anterior, uma preocupação com a disparidade da quantidade de pessoas em manifestações contra a “corrupção” e em marchas contra o Feliciano. Em Mongólia (2003), O filho da mãe (2009) e Reprodução há, respectivamente, as seguintes frases “Não existem homossexuais na Mongólia”, “Qualquer tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia” e “Não tem gay na China.” Elas, por vezes, surgem “do nada”, surpreendendo o leitor que não imaginava que o tema seria abordado. Você crê que há um apagamento deliberado da questão homossexual em nossos dias?

BC – Não, acho que a questão homossexual está muito presente e muito visível, provavelmente mais do que em qualquer outra época. Mas, mais uma vez, isso não é suficiente para impedir que se reproduzam um ódio e uma violência primordiais contra os gays. É como se houvesse um ponto cego aí, como se, de novo, a consciência não bastasse. Eu não sei direito o que é. Às vezes, acho que pode ter a ver com a não-procriação, com o prazer sem procriação. O prazer do outro pode ser insuportável, ainda mais quando não há um labor aí, quando o prazer é ostensivamente um fim em si mesmo. Mas não sei se é isso, é mais uma especulação.

“Grande parte do debate acerca das leis sobre orientação sexual girou em torno da ideia de que quem escolhe a homossexualidade não deve ser protegido, mas se nasce com ela talvez seja”, escreve Andrew Solomon em seu Longe da árvore, 3 recém-lançado no Brasil. Interessante que ele use o verbo “girar” no passado, enquanto no Brasil a tônica do debate “Comportamento X Genética” ainda seja atual. Bernardo, o que você pensa sobre a possibilidade de que a ênfase dada à explicação biológica para a homossexualidade dê vazão a uma prevenção genética 4 ?

BC – O problema em ciência é sempre esse: você pode usar suas descobertas em aplicações com finalidades radicalmente opostas. Eu tenho a impressão de que a homossexualidade não é uma escolha, de que ela tem uma explicação biológica, sim, mas o mesmo acontece com um monte de outras características humanas que a sociedade também poderá querer extirpar por meio da intervenção da ciência. É a sociedade que precisa desenvolver leis que defendam o indivíduo, os desvios e as exceções.

“Liuli”, como se chama a professora de chinês em Reprodução, pode significar “Cristal, aborto ou mendiga miserável”, dependendo da entonação. O nome dos personagens parece ser objeto de um constante cuidado seu. Vários deles são identificados por iniciais, adjetivos, epítetos, nomes estranhos para os brasileiros (como diz uma personagem no seu último romance “Confundo nome russo. Nome russo é dificílimo.”) ou, até mesmo, por mais de um dos anteriores. Além de preservar o suspense no romance, você se preocupa a respeito de como as identidades dos personagens são expostas em seus livros? Em apontá-los como identidades fragmentadas, muitas vezes contraditórias?

BC – A história com as identidades é um velho problema meu. Calhou de eu viver e escrever num mundo e num tempo obcecados pelas identidades, como se elas fossem atributos da natureza. Isso me aborrece. As pessoas acham que ter uma identidade as torna mais livres, mas eu acho que é o contrário, as identidades são prisões. No melhor dos casos, servem de muletas de sentido pra quem não tem força pra encarar o mal-estar da falta de sentido, que é (ou foi) a matéria-prima das artes. Detesto ter que corresponder à identidade que me atribuem e detesto ter que pertencer ao que quer que seja, clube, igreja, família, escola, nação. Acho que, de alguma maneira, essa minha reação está presente nos nomes dos personagens, na ironia dos nomes, na impossibilidade de nomear etc.

Bernardo Carvalho

Aparentemente, há um consenso de que seus dois últimos romances são os que mais destoam do restante da sua obra romanesca – ao menos é algo que foi reiterado nas resenhas e comentários da penúltima Copa de Literatura. Talvez isso se deva à retomada do narrador em terceira pessoa, deixado de lado desde Onze (1995). Essa mudança foi fruto de uma busca pessoal ou algo demandado pelos últimos livros que escreveu?

BC – Acho que os dois últimos livros são muito diferentes entre si. O filho da mãe foi escrito em terceira pessoa, porque eu tinha a desculpa de que aquilo ia acabar sendo adaptado pra cinema. Isso me fez perder o pudor de escrever em terceira pessoa. O narrador não é onisciente mas ocupa um lugar muito semelhante ao do espectador de cinema. Já o Reprodução, que me parece remeter a livros anteriores, como o Teatro (1998), foi escrito nessa estranha forma de diálogo sem interlocutor, ou pelo menos com um interlocutor oculto, que tem a ver com a internet. Acho que cada livro pede a sua forma.

Um dos momentos de O filho da mãe mais elogiados na citada Copa de Literatura foi o epílogo, em que se descreve o nascimento de uma quimera, portadora de mau-agouro, prontamente morta. Um dos vários modos de compreender a palavra “reprodução” presentes em Reprodução é o da reprodução sexual, que pode originar toda uma série de aberrações, como vistas pelo estudante chinês: judeus, pretos, gordos, gays e lésbicas, crentes. Em algum momento aquela quimera serviu-lhe de mote e inspiração para o seu novo romance?

BC – Acho que é a história da reprodução como uma condição paradoxal e trágica, como eu disse em relação à sua primeira pergunta. Nos dois romances, essa questão está presente, contaminando toda ação, todo movimento de personagens que fazem o mal, achando que estão fazendo o bem, e que avançam pra morte, achando que lutam pela sobrevivência.

Está em seus planos escrever algo ambientado em Berlim, cidade em que morou há pouco tempo? Ou, pelo menos, organizar os Diários de Berlim – publicados no Blog do IMS – em um livro?

BC – O livro que eu tentei escrever em Berlim ficou inacabado e foi parar numa gaveta. Não pretendo tirar ele de lá tão cedo.

  1. Um pouco forçada, diga-se de passagem. Há ainda outro livro dele, editado pela PubliFolha, composto de resenhas, críticas e algumas ficções: O mundo fora dos eixos (2005). Não sendo este um livro de ficção per se, omito-o.
  2. A resenha sobre Reprodução sairá em breve.
  3. Outro livro a ser resenhado em breve.
  4. Andrew Solomon, em seu livro: “Aqueles que pensam que uma explicação biológica da homossexualidade irá melhorar a posição sociopolítica dos gays também estão tristemente enganados, como a reação a recentes descobertas científicas deixa claro. (…) Em estudos com animais, a exposição pré-natal à dexametasona parece causar muitos problemas de saúde, mas se há medicação que possa realmente limitar o lesbianismo, os pesquisadores vão descobrir uma mais segura. Descobertas médicas como essas continuarão a ter graves implicações sociais. Se desenvolvermos marcadores pré-natais para a homossexualidade, muitos casais abortarão seus filhos gays; se descobrirmos uma droga preventiva viável, muitos pais estarão dispostos a experimentá-la.”