O jornalismo possui uma ligação bastante interessante com a literatura nos Estados Unidos, especialmente ao longo da década de 30, durante os anos da Grande Depressão. Autores como William Faulkner, John Steinbeck, Tom Wolfe e outros mais iniciaram sua caminhada na senda das letras precisamente a partir do jornalismo. Processo parecido se deu com Norman Mailer e Hunter Thompson, por exemplo. Não foi diferente com James Agee, que em 1936, juntamente com o fotógrafo Walker Evans, viajou para o sul do país rumo ao Alabama para conviver com os lavradores e meeiros da região e escrever um artigo para a revista Fortune.

Agee e Evans não foram simplesmente escrever sobre a dramática situação dos meeiros, arrendatários e pequenos proprietários rurais do sul do país. Quem sabe a “ética jornalística” lhes dissesse para manterem-se distantes, para que pudessem, consequentemente, cultivar uma suposta “neutralidade” que não teriam de outra forma. Não foi, entretanto, o que fizeram. Simplesmente não puderam permanecer “inafetados” pelo que viram: sua solidariedade humanista, seu senso moral e sua própria consciência falaram mais alto. Precisamente desse chamado da consciência é que veio a surgir não uma matéria para a Fortune (o artigo de Agee e as fotos de Evans nunca foram nela publicados), mas uma obra dez vezes maior do que o tamanho previamente estipulado: o visceral, experimentalista, vasto, profundo e extremamente pujante de vida Elogiemos os homens ilustres.

O caráter de experimentação de Agee torna difícil qualificar o livro, e uma tarefa potencialmente ingrata tentar lhe resumir. Se dissesse que se trata de um livro que busca compreender a função da literatura perante a realidade que a cerca, estaria certo. Se dissesse que é um livro que investiga os mecanismos de constituição da literatura, ou como a realidade vem a se tornar, por meio do escritor, uma narrativa ficcional ou um amontoado de palavras com um sentido e uma mensagem, estaria certo também. Se dissesse que é um livro sobre famílias de meeiros do sul dos Estados Unidos em meio a miséria do rescaldo da crise de 29, também estaria. Se dissesse que é um esforço moral admirável e tonitruante, também. Um libelo contra a ganância, também. Um exercício descritivo singular – de proporções ciclópicas -, também; uma reelaboração das potencialidades do uso de dois-pontos, também; uma reportagem gigantesca, também; um estudo sociológico, também; um levantamento etnográfico, também. E assim por diante, quase indefinidamente.

Allie Mae Burroughs, 1936

A sensação que a prosa de Agee nos causa é justamente essa: de que sempre há algo a mais,  uma circunvolução da realidade ou uma pequena porção do tecido do espaço-tempo que parece querer fugir da capacidade de retratar do escritor, mas que ele persegue obstinadamente. Essa obstinação procura colocar o leitor na posição mais privilegiada possível na compreensão e na vivência daquele ambiente e de todo aquele contexto. A descrição, portanto, tem um papel fundamental em Elogiemos os homens ilustres.

Agee escarafuncha cada mísero possível detalhe sobre aquelas famílias e tudo o que tenha a mínima relação com qualquer rastro de sua existência deles: trabalho, vida familiar, crenças religiosas, senso de identidade, vestimentas, práticas cotidianas, moradias, hábitos alimentares, organização familiar,  cultivo agrícola, senso de historicidade, noção de tempo e assim por diante. As descrições das casas onde vivem as três famílias com as quais eles conviveram, por exemplo, são de uma ambição de captação literária que impressiona. A dedicação e a obstinação de que ele se utiliza ao descrever e procurar pôr o leitor em contato com aquela realidade é contagiante, é possível enxergar o notívago escritor varando noites extasiado por tanto a ser dito e retratado.

A voz da realidade falou com tal intensidade que Agee não pode permanecer inerte a esse chamado, ele foi tomado por um sentimento frenético de dever a cumprir, uma obrigação moral que abraçou de corpo e alma, e que levou a cabo com uma consciência louvável, já que, a julgar pelo ritmo das palavras e a obstinação que emana de cada parágrafo, a realidade parecia querer lhe pôr louco. Era um esforço que almeja atingir a todos. Agee não queria que o livro o engrandecesse individualmente, nem queria ser uma criação voltada à fruição per se, mas pelo desconforto moral:

“Acima de tudo: pelo amor de Deus não pense nisto aqui como Arte.” (p. 32)

Bud Fields and his family, 1936

Os propósitos dos dois não são com o belo nem com as demarcações do campo artístico; seu compromisso é mais amplo, mais profundo: está entranhado na própria consciência de cada um de nós. Agee se vale daquela experiência com as famílias Gudger, Ricketts e Woods para perscrutar a própria natureza humana e o sentido de sua trajetória histórica. Ele voa alto, longe, e depois volta, foca e amplia suas abordagens. As fotos de Evans nos provêm o chão, para que não percamos de vista a especificidade dessa situação histórica, a materialidade e a concretude daquilo tudo que a prosa de Agee pode, às vezes, fazer soar geral ou etéreo demais. Agee generaliza panoramicamente no tempo e no espaço, Evans nos localiza, mantém as pontas devidamente atadas, para que não nos deixemos perder o foco com as explorações vastíssimas – tanto na horizontal quanto na vertical – da narrativa.

Os anos 30 conheceram grandes autores norte-americanos, e vários deles flertaram com o que, na época, se chamou de “musa social”: uma preocupação de explicar a realidade de forma engajada, abertamente militante algumas vezes. A maneira como boa parte desses escritores concebia a “natureza” da literatura, sua construção estética e seu papel perante o mundo para-além de suas páginas tinha uma preocupação social singular, o que levava a questionamentos morais e estéticos bastante interessantes. Tais preocupações estão presentes em Elogiemos os homens ilustres, principalmente em um dos capítulos (Na varanda: 2), no que considero ser uma espécie de “tratado estético” da literatura realista norte-americana dos anos 30.

Elogiemos os homens ilustres me pareceu muito mais do que uma leitura ou um livro, meramente. Me pareceu uma verdadeira experiência, que Agee e Evans conduziram no sentido de testar até que ponto se pode transpor algo do real para a narrativa, até que ponto pode-se “escrever a realidade”, e como ela afeta ontologicamente os seres que toca. Se para Agee e Evans foi tão intenso, boa parte dessa intensidade pode ser encontrada pelo leitor ao longo do livro, que, a meu ver, foi tão emblemático em relação ao seu tempo – em termos literários, jornalísticos, fotográficos, históricos, sociais, militantes, morais, éticos, epistemológicos etc. – quanto o é em relação aos nossos dias de hoje, pois é dono de uma atualidade e de um frescor impressionantes.